DA VAGA DE SALA - Especial Doclisboa
1073 Saenz Avenue, de Lucía Seles: grafomania em múltiplas expressões
Sensivelmente um ano depois regresso ao mesmo local para reencontrar Lucía Seles e o seu singular e inimitável cinema. Foi precisamente no mesmo Pequeno Auditório da Culturgest, e novamente no Doclisboa, que esta segunda-feira à tarde fui experienciando sensações de déjà-vu e déjà écouté, quer enquanto ouvia a realizadora argentina antes e depois da projeção, quer durante o visionamento do filme, 1073 Saenz Avenue (2025) [Avenida Saenz 1073] - no ano transato vi Fire Supply (2024). Tal como há um ano, na conversa pré-filme, Lucía Seles volta a declarar o seu amor incondicional às confiterías [confeitarias/ pastelarias/cafetarias] - lembro-me bem de ouvi-la falar das confiterías da Avenida de Roma (Lisboa) -, desta feita vai ainda mais longe e enumera o seu top 3 em Lisboa, a saber: Pastelaria Luanda (Avenida Estados Unidos da América), Café Polana e Pastelaria Dâmaso (ambas na Avenida de Roma). Estas e todas as outras informações que nos vai passando provêm de um sempre inseparável caderninho onde mergulha os olhos, o qual estende para mostrar à plateia - apelando ao nosso zoom ocular - as pequenas imagens de camiões (uma obsessão para Lucía, tal como os autocarros, isto no que toca a veículos) que parecem decorar o seu suporte físico para a assumida grafomania - necessidade patológica de escrever, de rabiscar, ou de fazer registos gráficos daquilo que vai observando. Com humor, Lucía conta-nos ainda que foi abordada no Burger King do Marquês de Pombal - "o mais lindo do mundo", diz Lucía - por um senhor que a questionou se vendia camiões. Do caderno mágico, a cineasta ainda foi buscar o seu encanto pela observação que fez do Hospital Unidade Psiquiátrica Privada de Aveiro, precisamente junto à estação ferroviária, num verdadeiro prelúdio para 1073 Saenz Avenue que, como em Fire Supply, expõe e enfatiza o fascínio obsessivo de Lucía por terminais de autocarros (ou só autocarros) ou pelo tempo nublado, mas, acima de tudo, por coisas, objetos e lugares que compõem a paisagem urbana no quotidiano e para os quais não parámos para olhar, quanto mais para sentir.
Planos inclinados; planos curtos; imagens tremidas, agitadas e aparentemente desorientadas, que vão alternando com imagens de outras cenas, por repetidas vezes; ausência de linearidade narrativa; conversas sobrepostas e/ou separadas da imagem-mãe; anotações como post-its no canto inferior esquerdo do ecrã - 1073 Saenz Avenue prossegue a expressão da grafomania de Lucía através da câmara e muito pela montagem: o motor da sua linguagem cinematográfica, como víramos em Fire Supply. Todavia, relativamente ao filme anterior, 1073 Saenz Avenue hiperboliza a grafomania de Lucía, por um lado, porque aumenta muito consideravelmente a quantidade de anotações ao longo do filme, muitas vezes em sobreposição com diálogos, obrigando o espectador - especialmente aqueles que não dominem o castelhano - a desdobrar-se entre leitura de legendas, de anotações e ainda escuta do som (conversas, ruídos) em simultâneo; por outro, porque ao contrário de Fire Supply a própria Lucía é protagonista no filme, logo, toda a grafomania que ela vive no seu dia a dia é transmutada em corpo e voz para a história que vamos vendo. E Lucía como personagem no filme é rigorosamente igual à Lucía cineasta, à pessoa, que ouvimos falar antes e depois da projeção. A certas alturas somos obrigados a decidir: ou ficamos com as anotações ou ficamos com as imagens e os diálogos. Deixei cair alguns dos post-its para quiçá apanhá-los num futuro visionamento. A omnipresença de Lucía no filme, como protagonista e como ideóloga daquela linguagem, é o quanto baste, mesmo que a linguagem do seu cinema pressuponha sempre mais alguma anotação adicional.
Se em Fire Supply acompanhámos as longas caminhadas pela cidade de um dos protagonistas com a mãe (ela, o verdadeiro alter-ego de Lucía), por sua vez, em 1073 Saenz Avenue é Lucía e Martita (uma velha amiga da mãe) que percorrem a Avenida Saenz, em Buenos Aires, lugar onde Lucía viveu com a família durante dois anos (de 1983 a 1985). Sim, há uma certa nostalgia e memória, em especial quando ambas vão visitar o ginásio que há 40 anos era a casa de família da cineasta - "ninguém vivia nesta avenida", diz Lucía algumas vezes -, mas a predestinação de Lucía em ver para lá de, para uma certa unicidade das coisas, dos objetos e dos lugares, que aos seus olhos são autónomos de categorias, faz com que a sensibilidade que guia a observação daquilo que a rodeia se sobreponha e até abafe a nostalgia e a memória. No ginásio, o proprietário mostra-lhe o espaço e, mais do que lembrar-se de como a casa era, Lucía fica fascinada com aquilo que vai vendo agora: as máquinas de exercício, os bancos no vestiário - onde Martita fica sentada, ali esquecida, enquanto a visita guiada prossegue -, a porta de madeira na sauna, que Lucía toca e admira, como um objeto de culto.
Cá fora, na avenida, acontece o mesmo. Contempla, cheia de fascínio e ternura - e arrasta com ela a velha Martita -, um posto de abastecimento de combustível, olhando, e mais à frente pondo-nos a olhar novamente num plano fixo, para as mangueiras dos diferentes combustíveis, de cores distintas, com as respetivas identificações, acompanhadas por um letreiro. Contempla um autocarro (com letreiro) parado e abeira-se dele na esperança de estar a entrar num terminal (uma das grandes obsessões), mas afinal não, nada que a câmara e a montagem não resolvam, pelo menos para nós, espectadores, que noutra sequência vemos um terminal com vários autocarros e, inclusive, o derradeiro plano é feito com a presença deles (autocarros com letreiros). Põe-nos também a contemplar e experienciar interiores das glorificadas pastelarias/cafetarias, esquecendo por lá a câmara, em raros longos planos fixos. Contempla o edifício do hospital, e a câmara esboça um contre-plongée para nos mostrar a sua impressionante austeridade -"adoraria viver num hospital como este", reforça Lucía, acompanhada de Martita. Do que sobra da Avenida Saenz dos anos 80 conta-se a Igreja, que para Lucía fica mais bonita nos dias nublados, aliás, a própria avenida ganha suavidade em dias nublados como aquele em que por ela caminham, contrariamente à agressividade espoletada pelo sol - que Lucía abomina -, a Pizzería Tropical e a fábrica da Coca-Cola, com o vermelho da sua estrutura a estender-se por portas, vedações, escadas, e que continua a impressionar Lucía.
Na sessão de questões e respostas perguntei a Lucía se tinha referências, outros cineastas, que tenham ajudado a abrir este caminho de autodidatismo que observamos no seu cinema. Além da fadista Celeste Rodrigues (irmã de Amália), de quem já falara no ano passado, soltou o nome de Rainer Werner Fassbinder - melhor do que Shakespeare, para Lucía. E pensando em Fassbinder, cola-se bem aos dois a frase que ouvimos de Lucía no filme: "A paixão é tudo. Tudo o resto é interrupção".
Avenida Saenz 1073, de Lucía Seles (2025)
Visionado no Doclisboa, na Culturgest
Adquira o Livro NA VAGA DE ROHMER - Escritos sobre (65) filmes | O ANO ZERO
À venda em Portugal
À venda no Brasil

1073 Saenz Avenue, de Lucía Seles (2025)



