Small Things Like These, de Tim Mielants: presente com janela para o passado
Há não tanto tempo assim vi 'Crime e Castigo' (1983), a primeira longa-metragem do inconfundível Aki Kaurismäki, já depois de ter lido a obra homónima de Fiódor Dostoiévski. Quando vi o filme já conhecia também os traços identitários do cineasta finlandês - fascinou-me especialmente a denominada trilogia do proletariado, com 'Sombras no Paraíso' (1986); 'Ariel' (1988); 'A Rapariga da Fábrica de Fósforos' (1990) -, pelo que a expetativa de ver o Raskólnikov, e toda a sua entourage, à la Kaurismäki, era deveras enorme. A partir da obra de Dostoiévski, Kaurismäki transporta para a sua cinzenta e opaca Helsínquia espaços fulcrais semelhantes (o quarto do protagonista; a esquadra da polícia; as ruas percorridas a pé); momentos-chave semelhantes (a conversa ouvida por um terceiro no quarto ao lado; o entrar, sair, para voltar a entrar definitivamente na esquadra da polícia); e excertos de diálogos semelhantes ("o piolho" ou "o 2x2 é igual a 4"). Porém, a narrativa é diferente; as personagens são diferentes, mesmo que por vezes digam as mesmas coisas que lemos no livro; determinadas personagens da obra russa são como que fundidas numa só no filme finlandês (a irmã e a 'amada' de Raskólnikov estão condensadas na protagonista feminina do filme; o polícia e o juiz de instrução estão diluídos no investigador criminal do filme); o 'Raskólnikov ' de Kaurismäki (no filme tem outro nome, claro) não deixa de contemplar o ADN do homem simples, comum, terreno, prático, que trabalha num matadouro - o que é bem sugestivo -, de poucas falas, que nos habituamos a ver no cinema de Kaurismäki, despido da densa intelectualidade existencialista do Raskólnikov de Dostoiévski, aproximando-se, todavia, um do outro, numa espécie de eclipse de consciência que, por motivos e convicções de origem e profundidade distintas, os liberta para matar. Sim, o filme 'Crime e Castigo' poderia viver por si só. Chegados até aqui para falar-vos de Small Things Like These (2024) [Pequenas Coisas como Estas] , de Tim Mielants, estreia do nosso Especial Leffest, este sábado no Teatro Tivoli. Não li o livro homónimo de Claire Keegan, que serve de base ao filme, pelo que não sei até que ponto Mielants foi mais ou foi menos Kaurismäki na relação livro-filme. No entanto, mais do que ler a obra da escritora irlandesa, o filme quase que exige que conheçamos de antemão, ou que procuremos conhecer depois do visionamento, os contornos reais e históricos das Lavandarias de Madalena - instituições geridas pela Igreja Católica em parceria com o Estado Irlandês que funcionavam como asilo para reabilitação de mulheres 'prevaricadoras', de acordo com a doutrina ultraconservadora dominante. A última destas casas, ou convento de freiras - locais onde as raparigas/mulheres eram obrigadas a trabalhos forçados, sofriam maus tratos, e onde até foi descoberto um cemitério clandestino -, fechou em 1996. O conhecimento deste episódio de vida real é indispensável, não para refletir, discutir, relembrar, enquadrar com o filme, mas sim para construir, completar, robustecer (o filme). Small Things Like These não vive por si só, ao contrário do filme de Kaurismaki.
A atmosfera escura à noite e sombria de dia, onde o sol nunca é convocado, em que a neblina é espessa, algures numa pequena comunidade da Irlanda dos anos 80, sonorizada logo de início pelo tocar contínuo dos sinos da torre da igreja que vemos de diferentes enquadramentos, quase que já não precisava dos corvos que observamos nos cabos elétricos para pressagiarmos o mal, as trevas - à memória saltou-me logo 'O Clube' (2015), de Pablo Larraín - trouxemos em DA VAGA REALIZADOR DO MÊS, no último Dezembro. Mas no filme chileno vemos os males da Igreja por dentro, até à medula, enquanto no filme de Mielants apenas espreitamos por uma porta, ou janela. E quem espreita por nós é Bill (o oscarizado Cillian Murphy, com Oppenheimer [2023]), um simples vendedor de carvão, pai de cinco filhas, que, em vésperas do Natal, com a neve a dar de si, reforça as entregas para aquecer as casas. Numa dessas entregas de carvão, enquanto arruma os sacos na porta escura - de onde não vemos emanar um fio de luz, reforçando, juntamente com o negro do carvão, toda uma imagética de trevas, do mal, do sombrio - do armazém da instituição da Igreja Católica, assiste especado, imóvel e impotente ao arrastar de uma rapariga pela mãe até à porta onde a freira aguarda por ela. Este momento observacional de Bill, enquanto mero espectador, enquanto agente passivo de uma realidade que se dá aos seus olhos, a poucos passos dele, transporta-o, e transporta-nos, a partir dali, para sucessivas viagens ao seu passado, enquanto criança; num passado em que foi muitas vezes espectador, em que olhava pela janela.
Socorrendo-se da habilidade performativa de Cilian Murphy, o filme coloca aos seus ombros, juntamente com os sacos de carvão, todo o peso da cumplicidade das gentes daquela terra - incluindo a mulher dele e a professora da escola - com a Igreja Católica; sabem, mas não querem saber; conhecem, mas não querem conhecer, efetivamente, o que dentro daquela instituição se vive. Exalando toda uma convulsão interior, um sofrimento em estado de ebulição, que não consegue sair cá para fora, e que o seu olhar pueril, a olhar pela janela do passado, transmite, Bill vai lavando as mãos, dia-a-dia, num ato que vemos repetidas vezes, quando chega a casa, para limpar a sujidade do carvão; esfrega vigorosamente, mas as manchas parecem não querer sair. E foi mesmo necessário que a rapariga do arrastão desse com ele, ou ele com ela, por acaso, no armazém adjacente à instituição religiosa, aquele da porta escura, para que Bill entrasse no covil das freiras e nos mostrasse qualquer coisa que fosse, até para consubstanciar todo aquele sofrimento de alma penada que vamos vendo ao longo do filme no protagonista. Mielants prefere enfatizar o pedestal em que se move a irmã-chefe; inicialmente, com uma lenta e suave panorâmica que nos leva de Bill, com a rapariga encontrada no carvão, até ao rosto da voz que vamos ouvindo, fazendo-nos notar a distância, não a física claro; depois, com um chá e bolinho ao som do queimar da lenha na lareira que aquece os confortáveis aposentos, onde vemos a (mesma) madre superior sentada, de postura rígida, altiva, de um lado, e o cabisbaixo, a pequenez, do curvado Bill, do outro.
Nos créditos finais, o filme é dedicado às 56 mil jovens na Irlanda que foram enviadas para asilo e reabilitação nas Lavandarias de Madalena. Julgo que a memória de tantas sofredoras merecia um exercício mais profundo, e, essencialmente, que assentasse em quem sofreu horrores, mais do que naqueles que foram sofrendo passivamente, enquanto espectadores, lavando as mãos quase até ao limite.
Small Things Like These, de Tim Mielants (2024)
Visionado no Festival Leffest, Sala do Teatro Tivoli
Small Things Like These, de Tim Mielants (2024)