DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
'Verão 1993', de Carla Simón: em reparação contínua, gradual, genuína
Lembro-me de ter escrito há uns tempos num texto sobre 'Nunca Chove na Califórnia' (2022) que a realizadora desse filme, a norte-americana Jamie Dack, à semelhança da espanhola Clara Roquet, em Libertad (2021), e da escocesa Charlotte Wells, em Aftersun (2022), todas elas estreantes em longas-metragens, se tinham socorrido das suas próprias experiências pessoais, vividas na primeira pessoa, digamos, absolutamente marcantes, para a partir daí, dessa base, desse alicerce, construírem e erguerem narrativas, filmes, com vidas próprias; em suma, ficção fortemente alimentada pela realidade. Na altura desse escrito não mencionei a catalã Carla Simón porque já ia com duas longas-metragens na algibeira, mas, em sintonia com o trio acima citado, a sua primeira (longa), 'Verão 1993' (2017), brota também de um momento verdadeiramente impactante vivido pela própria: um verão que a deixou órfã de pai e mãe, um verão que lhe trouxe uma nova vida, um novo lar. Li numa entrevista de Carla Simón que as palavras de um professor seu na London Film School foram decisivas para agarrar essa ideia de partir de uma experiência própria, pessoal, muito particular, que, com efeito, seria só dela. A realizadora da Catalunha, que além de 'Verão 1993' já nos ofereceu o maravilhoso 'Alcarràs' (2022), tem agora a desfilar em Cannes a sua terceira longa, Romería (2025) - e em Maio é a eleita DA VAGA REALIZADOR(A) DO MÊS. Herdeira de uma linguagem e de um estilo martelianos, deixando a história e o filme correrem como corre a vida, com ritmo, mas também com pausas, com entretenimento, mas também com tédio, com afazeres, mas também com ócio, com conversas, mas também com silêncios, com coisas essenciais, mas também com o acessório, com o principal, mas também com o colateral, com coisas de graúdos, mas também de miúdos, com olhos, mas também com ouvidos - tal como no cinema de [Lucrecia] Martel, e na vida real, de grosso modo, em que nada parece estar a acontecer estando tudo a acontecer. No cinema de Simón, como no de Martel, não se corre pelo filme em busca de chegar a algo ou a sítio algum, não há essa ânsia e necessidade de revelação, de confirmação, tão pouco de reviravolta ou de transformação; estamos mais perante uma constatação genuína que vamos construindo gradualmente, em linha contínua. Não resisto a puxar também Mia Hansen-Love para junto de Carla Simón: a sensibilidade, a delicadeza, a suavidade e até uma certa ternura com que a câmara se move, tão visível na cadência com que as panorâmicas se dão, ligando protagonistas, e funcionando como amortecedores estilísticos, visando, e robustecendo, uma certa linearidade que se pretende seguir, sem grandes quebras ou mudanças abruptas. Martel, Hansen-Love e Simón são a minha tríade de pedestal entre as realizadoras-mulheres-vivas.
O derradeiro plano de 'Verão 1993' condensa no essencial o filme e muito do cinema de Carla Simón. Com a câmara a acompanhar com suavidade os movimentos que se dão à frente dela pelos protagonistas: Frida (Laia Artigas), a menina que perdeu os pais e que agora vive com os tios que são simultaneamente os pais adotivos, a prima Anna (Paula Robles), mais pequenina, filha do casal, o tio/pai Esteve (David Verdaguer), os três brincam, saltitam e lutam com almofadas na cama, em plena harmonia familiar, até ao momento em que Frida - vendo que Anna está no colo do pai - desata a chorar e a entristecer, sendo reconfortada também por Marga (Bruna Cusí), a tia/mãe, que agora se junta e completa o quarteto da casa; ou seja, o filme acaba num momento em que nos diz que a reparação em curso na vida de Frida, que vemos desde o primeiro segundo do filme - já a mãe tinha morrido e ela estava pronta para partir com os tios para a casa deles no campo -, continuará para lá do filme, pois não é coisa que se faça em hora e meia de película e em um par de meses de temporalidade na história. O término do filme não resolve ou encerra a problemática inerente àquela vida em curso, não fica tudo bem, tratado, resolvido e pronto! Em coerência com o decurso do próprio filme, com avanços e recuos na adaptação de Frida à nova família, à nova casa, ao novo espaço, ao seu novo lugar naquele agregado, em simultâneo, e misturado, com o exercício do luto pela mãe recém-falecida, aquele plano final, mesclando alegria, satisfação, tristeza, saudade, tudo num curto espaço de tempo, é prodigioso, consequente e também infinitamente belo: os quatro na cama, de frente para a câmara, abraçados uns aos outros.
Saltemos agora para o plano de abertura. A câmara encosta à nuca e aos caracóis de Frida para que os olhos da pequena sejam também, e ao mesmo tempo, a lente que nos mostra as imagens. Como uma espécie de fusão, entre a câmara e Frida, vemos muitas coisas pelos olhos da criança: logo no início, quando Frida está sozinha na rua e os miúdos em volta brincam, o fogo-de-artifício que rebenta nos céus noturnos e que lhe faz levantar a cabeça, e depois o travelling, ainda na nuca, ao longo do extenso corredor escuro da casa onde a família prepara a mudança; é ainda com os olhos dela a fazerem de lente de câmara que espreitamos, à distância, para o compartimento onde os adultos organizam a logística para a partida. Já na casa de campo com tios e prima, o seu novo lar, pelos olhos de Frida continuamos a observar todo um mundo de coisas novas - ela vem da cidade, de Barcelona, para o campo - as erveiras dos tomates e as cabeças de alho penduradas na cozinha tradicional; as galinhas que põem os ovos; a cabeça tombada da ovelha a jorrar sangue após a matança - ouvimos primeiro os derradeiros sons de sofrimento do animal, ouvimos depois o sangue a correr para o balde e só depois, com os olhos de Frida, vemos a ovelha já morta. Sangue que é um elemento presente e também imaginário ao longo de todo o filme, ligando a vida e a morte, prolongando também o processo de luto de Frida pela mãe, remetendo para uma certa consciência da morte. Vemos Frida a tirar sangue no médico, percebemos depois que era para despiste do vírus HIV, a causa de morte da mãe; vemos Frida a esfolar o joelho numa brincadeira e a mãe de uma outra menina a correr em pânico para impedir que a sua filha pudesse eventualmente ser contaminada - aqui Simón toca ao de leve, como a ferida no joelho de Frida, mas de modo profundo como o tema exige, estávamos nos anos 90, o HIV era causa de morte para muita gente e o medo de contágio andava à solta -; vemos ainda o sangue no penso higiénico que Marga troca na sanita em frente a Frida. E o sangue é ainda tema de conversa quando Frida questiona Marga sobre a morte da mãe e se ela deitou sangue.
É especialmente interessante acompanhar e constatar o progresso gradual, não sem recuos, na relação entre Frida e Marga, em ambos os sentidos: ora pelos comportamentos de Frida, promovendo a irritação da mãe adotiva - não tanto do pai, que parece estar sempre zen e afetuoso -, provocando-lhe sustos, usando a pequenina Anna como instrumento, mas também demonstrando afeto e preocupação por ela quando esta está na cama com dores menstruais; ora pelas panorâmicas da câmara, que ligam lentamente Frida a Marga - quer no carro, quando Frida está amuada no banco de trás por causa do cabelo, Marga para o carro, debruça-se para penteá-la, estreitando distâncias, mas a pequena manda o pente fora, quer no exterior da casa, com Anna desaparecida (com o dedo de Frida) e a câmara a fazer o movimento entre Frida e Marga, suavemente, com todo um vasto e espesso bosque no horizonte, entre elas, por onde Anna andará perdida; ora pelas imagens de cumplicidade quando ambas chupam o mesmo gelado ou disfrutam do vento, da música (jazz, sempre jazz diegético) e da paisagem em redor numa outra viagem de carro das duas, novamente ao médico; e até por aquela conversa já citada sobre a morte da mãe.
'Verão 1993' é um filme para pais, para filhos, para avôs, para tios, para família, para adultos, para jovens, para adolescentes, para crianças. É a vida que corre ao sabor do tempo, num verão.
Estiu 1993, de Carla Simón (2017)
Visionado em Filmin Portugal
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'Verão 1993', de Carla Simón (2017)