Actual People, de Kit Zauhar: o último passo para ser uma pessoa real
Volvidos mais de 15 anos do término da minha vida universitária - simultaneamente a primeira experiência de viver fora de casa dos pais -, é sempre submerso numa profunda nostalgia que olho para esse tempo, um tempo que à altura me parecia feito de infinitude. Uma autêntica viagem de transição entre o início da juventude e o arranque da chamada vida adulta; uma viagem feita de euforia, liberdade, exuberância, acaso, loucura, sonho, improviso, camaradagem, imprevisto, amizade, paixão de viver. Assim foi. Como tal, no final dessa viagem de quase cinco anos, abateu-se sobre mim uma tristeza perfurante como resposta a um enorme vazio que ficou após fechar a porta (literalmente) da minha casa até então. Recordo-me perfeitamente do último jantar, seguido de saída noturna, do empacotar de livros, cadernos e dossiês, da loiça final que uma amiga ajudou a lavar, dos derradeiros abraços, do encher da mala do carro - o pequeno e branco Nissan que no 5.º ano (final) de Universidade substituiu o autocarro nas viagens de Braga para Trás-os-Montes -, da cinzenta viagem Marão (ainda não havia túnel) acima, e do estacionar em casa dos pais com a tralha toda de cinco anos. A uma semana de concluir o ensino universitário, algures na metrópole Nova Iorque mas vinda da 'pequena' Filadélfia, assistimos a uma espécie de colapso nervoso, a uma busca de identidade, a uma crise de confiança e de autoestima, através da câmara e do corpo de Kit Zauhar, jovem realizadora americana, filha de mãe chinesa, na sua primeira longa-metragem: Actual People (2021) ['Pessoas Reais', em tradução literal]. Para Setembro, Kit Zauhar é a escolha DA VAGA REALIZADOR(A) DO MÊS.
Praticamente no final do filme, num plano de conjunto onde vemos vários jovens universitários sentados em círculo, ocupando sofás e chão da sala de uma casa que recebe a festa de despedida da aventura académica, dá-se um debate entre duas visões distintas sobre o impacto das alterações climáticas; de um lado, a realidade que advém da ciência, do outro, a realidade alternativa que emana de determinadas publicações; entretanto Riley (a própria Kit Zauhar) levanta-se e procura outro compartimento da casa, encostando o rosto ao aparelho de ar condicionado: ar para refrescar, respirar e evitar o sufoco. Aquela imagem de sociedade dividida e fraturada que ali vemos patente naquele grupo perante um tema cuja essência e problemática urge que impere consenso - especialmente entre jovens do mundo universitário - é perfeita no agudizar do receio, de um certo pânico até, de entrar na vida adulta que Riley reflete, como tantos outros jovens. Indefinição, deriva, procura identitária dos Millennialls (ou geração Y) marcam a narrativa de Actual People, muito condensada na protagonista Riley, que se desdobra entre sorrisos, gargalhadas, choro e dor (física também, devido a uma candidíase). Uma narrativa e um filme a fazer lembrar muito Friends and Strangers (2021) - já trazido aqui em DA VAGA DE CASA -, do australiano James Vaughan, também debutante em longas-metragens. Ambos os filmes, curiosamente lançados os dois em 2021, investem na criação de um certo paradoxo entre uma determinada dificuldade em comunicar pela conversa, de encontrar fluidez, sentido, jeito, propósito, assertividade de certo modo, dos seus protagonistas - um pouco apanágio desta geração entrincheirada entre gerações pré e pós-digitais -, mas ao mesmo tempo uma vontade de conversar como se fazia outrora, sem pressas, denotando curiosidade, ouvindo, protagonizando e respeitando silêncios. Ou seja, Vaughan e Zauhar alinham o seu cinema numa linhagem de filmes-conversa, um 'Elogio da Conversa' (seguindo o livro de Theodore Zeldin, que li há uns anos), como o cinema de [Jean] Eustache, [Éric] Rohmer, [Woody] Allen, [Noah] Baumbach ou do relativamente mais novato Jonás Trueba, autor de 'A Reconquista' (2016) e 'Têm de Vir Vê-la'(2022). Mas no que toca à estética de Actual People - tal como em Friends and Strangers, diga-se - é em Hong Sang-soo que pensamos.
Quando o filme de Kit Zauhar começa e vemos a câmara móvel deslizar entre o rosto de Riley e os rostos das duas amigas, num autêntico vaivém, suspeitamos que aquelas vidas de efervescência, frenesim e agitação encontrem sintonia numa câmara movimentada, movediça, instável, ao sabor dos corpos e das suas ações. Mas assim que as três raparigas põem pés na rua em direção a uma festa vemos a mesma câmara móvel (à mão) a ensaiar uma panorâmica para abrir a imagem e mostrar onde estão os restantes convivas à espera. Um prenúncio de estilo. Pouco tempo depois, no final daquela festa, vemos Riley na cama (no pós-sexo) com Leo (Scott Albrecht) - também descendente de asiáticos, em quem ela passará a procurar um novo David (Randall Palmer), o antigo namorado que a trocou por outra, gerando um trauma que está ainda por ultrapassar - em plongée [plano picado], num longo plano de minutos, e constatamos a dificuldade da câmara (da mão que a segura) em manter-se estacionária, sacudindo-se para fixar novamente. Por um lado, parece um confronto entre estilo e meios disponíveis - Actual People foi feito com míseros 10 mil dólares -, por outro lado, a pequena turbulência da câmara transmite-nos a sensação de que aquela cama é instável, movediça, tal como os relacionamentos de Riley depois de David. E sempre que pode a câmara fixa, estaciona nos diálogos, dá-lhes tempo, e enquadra de modo a que se veja o espaço/lugar onde as conversas se dão, mudando por vezes o enquadramento para que possamos ler e interpretar melhor, ou noutra perspetiva, o que os rostos e os olhares de uns e outros dizem, querem dizer, não dizem, ou não querem dizer. Numa conversa num gabinete com uma professora - acabará por reprovar Riley na respetiva disciplina, obrigando-a a frequentar aulas durante as férias para concluir o ensino académico - vemos Riley num plano ligeiramente inclinado, num espaço que pelas cores cinzentas branqueadas, pelos armários, e pelo ruído de fundo (maquinal) permanente - o som é um elemento que Zauhar utilizará e empolará significativamente na sua segunda longa-metragem, This Closeness (2023), como sinalizador permanente de momentos -, remete-nos para o interior de um avião, como que uma viagem em que Riley está prestes a aterrar.
Uma certa quebra de sequência na mudança de espaços e/de diálogos dos protagonistas, como fragmentos ou episódios que se vão encaixando no filme, reforçam a influência de Sang-soo no cinema de Zauhar, mas falamos de uma influência devidamente alicerçada, isto é, sem extravasar para um condicionamento no que concerne ao expressar de uma cultura e de um enraizamento próprios daquela vida, daquele espaço: os jovens universitários americanos de Nova Iorque agem necessariamente e substancialmente de modo distinto aos personagens sul-coreanos em Seul dos filmes de Sang-soo, mesmo tendo em conta a transversalidade (global) atual de comportamentos geracionais.
Ainda que ao de leve, Zauhar não se coíbe de trazer o tema da imigração, promovendo uma conversa acalorada entre a melhor amiga (também ela de origem asiática) e um amigo (branco), a propósito dos apoios sociais a filhos de imigrantes; e ainda quando Riley expressa à terapeuta da Universidade que talvez esteja particularmente interessada em Leo pelo facto de ele ser também um asiático-americano, revelando aqui uma tentativa de busca de bússola identitária. Interessante também este momento de Riley com a terapeuta e o chamar de atenção de Zauhar para a importância deste apoio psicológico nas escolas / universidades, onde Riley falava sobre inquietações, angústias, relacionamentos, mas que está limitado a um número relativamente reduzido de sessões / consultas.
Num encontro fortuito com a irmã mais nova (irmã também na vida real), num regresso fugaz a Filadélfia, Riley confronta-se com a sua própria juventude, prestes a perder-se, e enceta uma tentativa de ato de contrição através da irmã, apelando-lhe que beba menos, que não pareça vadia e oferecida, tentativa essa que acaba com ambas esparramadas no sofá de casa dos pais, envoltas em vomitado da noite anterior. Crise familiar resolvida com gritos, choro e abraço coletivo, tempo ainda para inserts de retratos de família, flores e desenhos na loiça, antes do regresso à grande cidade, embalado com música, cabeça no vidro do autocarro que serve também para suportar o único travelling do filme e assim atravessar a noite escura, mas ao mesmo tempo iluminada por luzes difusas, de cores variadas.
"Este é o último passo para ser uma pessoa real", diz Riley no fim. Bem, diria que Actual People foi o primeiro passo para Kit Zauhar (alguém que não quis esperar até aos 30 anos para ter dinheiro suficiente para fazer um filme) ser uma realizadora real. Entretanto, em 2023, reforçou os seus passos com This Closeness ['Esta Proximidade', em tradução literal], numa versão mais madura e sólida do seu estilo, mantendo-se em simultâneo como protagonista na representação. Aqui traremos em breve.
Actual People, de Kit Zauhar (2021)
Visionado em Mubi Portugal
Actual People, de Kit Zauhar (2021)