This Closeness, de Kit Zauhar: nas profundezas da solidão
ASMR (Autonomous Sensory Meridian Response), Resposta Sensorial Autónoma do Meridiano [em português], é uma sigla-conceito que tem vindo a ganhar uma larga popularidade através do Youtube. Tendo o vídeo como suporte, uns tentam provocar sensações em outros, visando o relaxamento. Os criadores destes conteúdos (youtubers) procuram espoletar a tal sensação de formigueiro, arrepio ou cócegas no couro cabeludo e no pescoço, uma sensação prazerosa, relaxante, por meio de efeitos visuais e, sobretudo, de sons. O tom, o timbre, o ritmo da voz, os movimentos com as mãos, o toque em diferentes objetos, fazem parte de uma panóplia de estímulos, os tais gatilhos necessários, que necessariamente variam de indivíduo para indivíduo. Livrar-se do stress, da ansiedade, das insónias, ou simplesmente fazer face à solidão, são motivações dos infinitos seguidores deste fenómeno, de uma nova geração que, duplamente e em simultâneo, parece recorrer sempre aos ecrãs digitais para suscitar e para obter as mais variadas respostas. E se em Actual People (2021) ['Pessoas Reais', em tradução literal] Kit Zauhar sobrepunha stories do Instagram a discorrerem pelo ecrã, desta feita, em This Closeness (2023) ['Esta Proximidade', em tradução literal], a jovem realizadora em ascensão no cinema independente norte-americano usa, aplica e amplifica o som (os ruídos variados, essencialmente, mas também a música) para criar e, ao mesmo tempo, submeter-nos a uma experiência sensorial de certa maneira próxima de um vídeo ASMR. Zauhar volta a dar corpo à figura central da história, nesta que é a sua segunda e mais recente longa-metragem, e bem que This Closeness poderia ser uma sequela de Actual People, no fundo é Zauhar (antes Riley, agora Tessa) a prosseguir na linha do tempo, a transitar de jovem universitária (em Actual People), daquelas stories do Instagram, para jovem adulta (em This Closeness), agora a fazer e a editar vídeos ASMR para o Youtube. Solidão, sobretudo como status mental, desajustamento emocional e social, indefinição, marcam esta nova vida de 'pessoas reais' que vemos agora em This Closeness.
Talvez para melhor retratar uma experiência aproximada com um vídeo ASMR e, simultaneamente, aprofundar o tema da solidão (e tudo o que ela envolve) nos tempos modernos, Zauhar resolve fechar-nos durante todo o filme num pequeno apartamento Airbnb - de paredes brancas e eletrodomésticos cinzentos, clean, frio, impessoal, arrumadinho, com pouca ou vida nenhuma - onde o jovem anfitrião Adam (Ian Edlund) recebe o casal de namorados Ben (Zane Pais) e Tessa (Kit Zauhar); durante um fim-de-semana partilharão, a três, o alojamento. Ben e Tessa vivem em Nova Iorque mas estão de regresso a Filadélfia para a festa-reencontro dele com os colegas de liceu, já Adam está a receber os primeiros hóspedes em casa, agora que o seu amigo Lance (quem só conhecemos de ouvir Adam a falar entusiasticamente) deixou a casa para ir cuidar da mãe doente. Nos instantes iniciais do filme, ouvimos desde logo a voz suave, sussurrante, pausada de Tessa a convidar-nos para a experiência sensorial que se seguirá, isto enquanto vamos vendo o corpo de Adam a acomodar cama, lençóis e almofadas, sem vermos ainda o rosto, que por esta altura só aparece tapado ou escondido pela cortina branca da janela do quarto: uma verdadeiro fantasma. Com um figura desajeitada fisicamente, de aparência robótica e maquinal, Adam transfere essa aparência, essa imagem, para o relacionamento com os outros, faltam-lhe competências sociais. Provavelmente, as dificuldades relacionais e o desajustamento social que evidencia serão também fruto da reação que os outros foram tendo e têm perante a sua aparência mais esquisita, mais fora da norma, digamos assim (personagem brilhantemente interpretada por Iand Edlund). Adam chega mesmo a partilhar com Tessa - numa conversa a dois que mais parece uma terapia mútua - que se sente rejeitado pelos outros.
Se Ben olha para Adam com desconfiança, receio e preconceito, estereotipando, por sua vez, Tessa sente curiosidade e, rapidamente, afinidade pelo anfitrião. Ben e Tessa partilham muitas diferenças: ele parece sentir-se confortável na sua convencionalidade e norma social, que resvala para uma certa superficialidade, parece viver um pouco à margem dos dilemas geracionais de Tessa (e também de Adam); ela vive dividida entre uma solidão que realmente sente e que descreve à terapeuta (sessão online) - tal como em Actual People, a personagem de Kit Zauhar continua a fazer terapia - e uma tentativa de contrariar essa solidão através do relacionamento com Ben, talvez por achar que deve ser assim, mais do que por querer que assim seja; a carência de autoestima que parece advir do preconceito de que foi alvo na escola por ser descendente de asiáticos - é filha de mãe chinesa - é também um íman que a cola a Ben, o rapaz convencido. Por sinal, Tessa vê um reverberar da sua solidão interior, profunda, em Adam, ambos sofrem do mesmo mal; talvez por isso ambos se dediquem a trabalhar sozinhos, no conforto do quarto, longe do contacto direto, presencial, físico com pessoas - ele também trabalha com vídeo, faz edição de vídeos promocionais para uma entidade desportiva. Adam é já um solitário crónico, Tessa vai tentando resistir a esse estado.
Evoluindo para uma câmara cada vez mais fixa, de longos planos para as conversas, cimentando o estilo que iniciou em Actual People, e mantendo um certo traço de semelhança com o cinema de Hong-Sang Soo, desta feita, Zauhar investe no som, amplificando os ruídos, e em alguns momentos recorre à música, para originar uma simbiose entre realidade e vídeo ASMR - experiência sensorial - em permanência, guiando-nos, retendo-nos, concentrando-nos, relaxando-nos, atraindo-nos, seduzindo-nos, através dos ruídos: das portas que abrem ou fecham e de quem entra ou sai delas, do frigórico aberto a mostrar a organização com um quê de autismo de Adam, do ventilador da casa-de-banho enquanto Adam sente as cuecas esquecidas de Tessa, do teclado e dos jogos de Adam que sinalizam a sua presença no quarto, da água que sai da torneira, do descascar de uma laranja, do sexo que se faz, do mexer no cabelo de Adam por Tessa que se assemelha ao toque nas folhas, na rama de uma árvore, do microfone especializado de Tessa para evidenciar e estimular proximidade, naturalidade e intimidade. E por meio de trechos musicais que nos encaminham para as entranhas, as profundezas de algures na nossa mente, até uma certa sensação de sufoco, seguida de necessidade de salvamento, libertação. E é em reposta a esse sufoco que Tessa vive, um pouco como Riley em Actual People, que vemos o aparelho de ar condicionado na janela do quarto, ao início, os vários planos da mesma janela com a cortina branca depois, e o abrir da janela por Tessa quase no fim, com o seu rosto em grande plano a ocupar todo espaço (da janela).
E é no rosto de Tessa que a câmara estaciona e despede-se, expressando a sua dúvida, incerteza, indefinição. Zauhar não produz transformações significativas nas suas personagens ao longo dos seus filmes, respeita uma certa linearidade comportamental, promovendo no entanto reflexão, questionamento, e deixando no ar a vontade de fazer algo diferente, de redirecionar.
This Closeness, de Kit Zauhar (2023)
Visionado em Mubi Portugal
This Closenes, de Kit Zauhar (2023)