DA VAGA DE SALA

Stéphane Pires • 20 de janeiro de 2025

'Ainda Estou Aqui', de Walter Salles: para que não nos falte a memória


Na estreia do Postal-Filme, na Rádio Movimento, na última quinta-feira, a Melissa Coimbra (com quem apresento o programa) trouxe o filme 'Anselm - O Som do Tempo' (2023), de Wim Wenders,  e, entre coisas várias, falámos da memória que a arte do germânico Anselm Kiefer preserva; uma memória coletiva em que o mal, a perversidade e o grotesco são marcas indeléveis de uma sociedade/nação assolada pelo nazismo, pela consequente segunda guerra mundial, pela consequente divisão de um muro a meio. Em 1969, na exposição de fotografias Besetzungen [Ocupações], Anselm Kiefer mostrava-se a ele próprio a fazer a (proibida) saudação nazi, em diferentes locais. Ainda no filme de Wenders, vemos Anselm a responder à polémica da altura - em imagens de um excerto de entrevista -, ressalvando a sua preocupação com a memória, assumindo, daquela forma, o combate a um certo apagamento da memória coletiva que a nova Alemanha estava empenhada em levar a cabo. Preservar e recordar - com informação, esclarecimento, denúncia, com recriação histórica, artística ou cinematográfica -, em vez de apagar e silenciar, será certamente o melhor antídoto para que caminhos e erros idênticos não sejam uma fatalidade. É bom que pais e Escola levem os nossos jovens a conhecerem o Museu do Aljube - Resistência e Liberdade; é bom que pais, Escola e RTP (enquanto serviço público de televisão) reforcem conteúdos sobre a vida de combate à ditadura que Mário Soares, Álvaro Cunhal, Humberto Delgado, e muitos outros, protagonizaram - há bons filmes, bons documentários e bons livros, felizmente. Da Alemanha para Portugal, da Europa para a América do Sul, parece-me uma evidência termos lido, visto, ouvido mais atrocidades das ditaduras militares de Pinochet, no Chile, e de Videla, na Argentina, do que propriamente do regime ditatorial (também militar) do Brasil, em vigor de 1964 a 1985, talvez por não ter havido uma personificação tão vincada de um líder, o tal culto de personalidade que é tão apanágio dos sistemas totalitários. Para que não nos falte a memória, Waler Salles oferece-nos 'Ainda Estou Aqui' (2024), tendo por base o livro homónimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado Rubens Paiva, torturado e morto (com ocultação de cadáver) pelo regime militar;  para que não nos falte a memória, Eunice (Fernanda Torres), a mulher, luta para legalizar e certificar o assassinato do marido - uma memória que nem o Alzheimer que vemos no rosto final de Eunice (agora com a passagem de testemunho entre filha e mãe, de Fernanda [Torres] para Fernanda [Montenegro]) consegue apagar, pelo menos totalmente.


Memórias boas também são para preservar, claro, e documentar. As fotografias da larga família de Rubens Paiva (Selton Mello) -  fora deputado do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) ainda antes do golpe militar de 1964, mas na temporalidade do início do filme, em 1970, é 'apenas' um arquiteto, aparentemente -, bem como a projeção de vídeos, feitos de câmara Super 8, em casa, na praia, ou em Londres pela filha mais velha, vão atravessando todo o filme, até ao epílogo, já em 2014. Boas memórias para sacudir as más memórias, ambas presentes no decurso da vida. Ainda bem fresco na nossa memória está aquela imagem macabra do encostar coletivo à parede dos imigrantes asiáticos no Martim Moniz, forçado pela polícia, momento esse ao qual instantaneamente associamos o encostar abrupto à parede a que a PE (Polícia do Exército) força Vera, filha mais velha do casal, e os restantes amigos que se passeavam com ela no carro, entre fumos, música e captação de imagens da rua. Depois de vermos e ouvirmos, no plano inicial, um helicóptero militar a sobrevoar o corpo de Eunice, que boia(va) relaxadamente no mar - o mesmo mar que se vê da janela de casa da família -, esse encostar à parede começa a atalhar o caminho que, sabemos de antemão, teremos pela frente. Eunice parece ser mesmo a única que sente ou pressente, ou leva a sério, a ameaça de algo que se aproxima; num retrato de família com amigos na praia, sob o grito uníssono "abaixo a ditadura", o olhar de Eunice é o único a reparar, no meio daquela alegria esfuziante, nas carrinhas de patrulha do exército que com relativo aparato passam na estrada em frente à praia. Na casa da família Rubens Paiva o temor é abafado pelas festas, música sempre a sair do vinil, que ouvimos e/ou vemos nas capas dos mesmos (Jane Birkin com Serge Gainsbourg, Os Mutantes, Caetano Veloso...), danças, whiskeys, soufflé de queijo suíço - uma la movida vanguardista, tropical, contagiante, em pleno contraste com o rumo que o Brasil sequestrado pelos militares estava a seguir e que a televisão ia transmitindo, por meio de contrainformação.


O pressentimento vira ameaça, a sombra vira prisão, a prisão vira tortura e morte. Num ápice, a luminosa casa à beira-mar escurece e perde a alma, até perder definitivamente toda a gente e esvaziar-se por completo. Bem que a câmara de Walter Salles poderia deter-se com parcimónia pelos compartimentos e paredes da casa agora vazia, sob a batuta de Eunice, mas parece haver sempre uma urgência e uma inquietação em mudar de plano, em seguir em frente, sem repousar. Até num dos momentos em que o repouso do corpo e da alma era mais do que justificado, Salles privilegia o movimento, neste caso o esfregar frenético do corpo no banho, por parte de Eunice, no momento em que regressa a casa após dias de prisão, tortura, cativeiro. Vergada, curvada, mas não vencida, assim a vemos naquele duche reparador, que lava vigorosamente as feridas e que nos diz que ela quer, tal como o filme, seguir em frente, avançar. E se o silêncio quanto ao paradeiro de Rubens Paiva, por parte do regime, é total e definitivo, já o filme carece do seu próprio silêncio: quando não há música, há interpelações e diálogos dos cinco filhos e dos demais, há som dos helicópteros - até nos sonhos ou pesadelos -, há gritos dos torturados. Eunice precisava de um pouco de silêncio, e nós também; e a câmara de Salles precisava de uns grandes planos de rosto de Eunice, e nós também, como tão bem vimos em 'Terra Estrangeira' (1995), também de Salles, também de Fernanda Torres.


Para que não nos falte a memória, é o manifesto que 'Ainda Estou Aqui' nos deixa, tão pertinente em tempos em que presenciamos a sucessivos retrocessos civilizacionais, democráticos, e à construção de uma nova velha ordem cujo futuro parece passar pelo abismo. E quando vemos o olhar vazio da envelhecida Eunice - padece de Alzheimer -, já em 2014, já no corpo e rosto de Fernanda Montenegro, a reagir apenas perante as imagens dos tempos da ditadura que passam na televisão e que culminam na foto do marido Rubens Paiva, só podemos compreender o peso da memória e todo o sentido do filme.


'Ainda Estou Aqui' (2024), de Walter Salles

Visionado na Sala do Cinema Ideal



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'Ainda Estou Aqui', de Walter Salles (2024)

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