DA VAGA DE SALA

Stéphane Pires • 15 de janeiro de 2025

All We Imagine as Light, de Payal Kapadia: um feixe de luz que irrompe


A luz. "Viu Deus que a luz era boa e separou a luz das trevas", lemos num fundo preto no início de 'O Clube' (2015), filme de Pablo Larraín. Esta passagem de um versículo da bíblia ganha especial relevância no final do filme chileno quando a aurora apodera-se do céu, agora mais limpo, e repousa no ecrã durante algum tempo, emanando a luz necessária para um renascer. Já em 'Reunião' (2021), de Fran Kranz, e em The Grief of Others (2015) [O Luto dos Outros], de Patrick Wang, a luz é fonte de redenção - de cura, de salvação, de libertação -, depois da morte, e do luto. Por sua vez, em All We Imagine as Light  (2024) [Tudo o que Imaginamos como Luz], da indiana Payal Kapadia, a luz guia, abre novos caminhos e traça destinos, mesmo que por vezes seja apenas um feixe de luz a irromper. Até parece que o título do filme, enquanto ideia, precede a construção da história e do próprio filme - e como isso resulta bem -, fazendo com que protagonistas, e nós próprios, andemos sempre atrás da luz, sempre a procurá-la, a descortiná-la, a decifrá-la, a contemplá-la. E é como se a própria luz presente (também em sentido literal) na identidade do filme servisse de lanterna à cineasta indiana, permitindo-lhe encontrar sempre rumo e sentido, mesmo no escuro.


Anu (Divya Prabha) procura um fio de luz solar no céu cinzento de Bombaim enquanto espera que o turno no hospital - é enfermeira tal como Prabha (Kani Kusruti), a outra protagonista, ligeiramente mais velha e mais experiente no ofício - cesse e ela possa correr clandestinamente para os braços do namorado - ele é muçulmano, ela é hindu, pelo que não haverá casamento abençoado pela família - que a inunda de mensagens ao longo da jornada laboral. Cinzento é também o metal de que é feito o varão - não para dançar, mas sim para segurar - do comboio onde Prabha se agarra para largar pensamentos, que rapidamente desaguarão numa Alemanha distante - onde vive o marido, com quem já não fala há demasiado tempo -, tão rápido como o comboio em sentido oposto que a câmara capta como um flash de luz. Luz que reflete no metal, também nos assentos do comboio, onde a câmara aponta para uma placa que nos diz "ladies only" [senhoras apenas]; e sim, este é um filme feito por uma mulher (que representa tantas outras na Índia, e não só) para outras mulheres: mulheres que querem ser simplesmente mulheres, apenas. Cabe a Prabha abrir a cortina para que as letras do título do filme apareçam a vermelho, como o sangue das mulheres que fica agarrado à placenta que depois é 'analisada' pelas estagiárias de enfermagem. Vermelha como o sangue é também a panela que Prahba recebe de presente, vinda da Alemanha, mas sem identificação de remetente. Antes de aquecê-la com o fogo do fogão, Prahba atarraxa-a entre as suas pernas, no escuro da madrugada - na casa que partilha com Anu -, onde a luz se vê apenas ao longe, nos prédios ainda parcialmente iluminados. Bombaim também não dorme: as buzinas dos carros e o passar do comboio são constantes.


À noite a luz está nos passeios que Anu e o namorado fazem pelos mercados nas ruas de Bombaim: a luz das iluminações, dos manjares, do fogo de artifício que rebenta nos céus, os sorrisos cúmplices e apaixonados do casal clandestino, as danças efusivas de quem vive aquela cidade como a cidade dos sonhos; sonhos que para Prahba são na verdade ilusões. Dentro de casa delas, o escuro da solidão e da tristeza de Prahba abafa quase toda luz; só o espelho de Anu a refletir os seus seios enquanto troca de roupa ilumina a escuridão, mesmo que essa luz fira os olhos de Prahba que prefere proteger-se, desviando o olhar: o contraste entre as duas colegas de casa e de ofício é deveras pronunciado, quando Prahba queima o dedo no fogão, Anu chupa-o para acalmar o ardor, ação essa que indigna Prahba. Dentro de casa da amiga mais velha de Prahba, que também trabalha no hospital, também não há luz, nem a elétrica. Ao fim de 22 anos, vai ficar sem casa, é irremediável, e ir viver com o filho num quarto não é solução. O que fazer então? Partir, partir em busca de luz, para longe, para o campo, para perto do mar.


Quando sensivelmente a meio do filme vemos o mar pela primeira vez - Prahba e Anu vão visitar a amiga, agora deslocada de Bombaim -, voltamos ao início do filme para nos lembrarmos do movimento, dos travellings estrada afora, dos comboios para cá e para lá, dessa incrustada imagética do partir, do sair, do viajar. Na nova casa da amiga mais velha continua a não haver luz elétrica; já não faz falta, a luz natural é soberana, e harmónica com a paisagem, também ela natural: mar e bosque. O chichi faz-se a olhar para a luz do sol que entra e brilha pelas folhas das árvores, e até a câmara aqui já se sente confortável para mostrar um pouco do corpo de Prahba, sempre tão vestido. Já o corpo de Anu despe-se quase por completo à luz do sol no bosque, a delicada lente de Kapadia capta a pele de galinha - arrepios de vontades e desejos em consumação, não do frio - e foca também os olhos que agora se fecham fruto da penetração da luz, precisamente depois de vermos o rosto de Anu cortado a meio, de olhos abertos, em busca da luz no escuro do interior de uma gruta. E neste lugar onde os grilos substituem os carros na produção do som noturno, Prahba parece viver agora dividida entre luz e sombra (a lembrar os noirs de Orson Welles), tão bem refletidas, ambas, geometricamente, nos rostos divididos a meio naquele quarto escuro onde apenas um feixe de luz consegue irromper: o rosto dela e o rosto do homem salvo pela boca dela. 


All We Imagine as Light  não é um filme para olhar e ver com olhos de ocidental. É para ver à luz dos olhos de Payal Kapadia, e de muitas outras mulheres (indianas e não só) que buscam luz - passe a redundância - para trilharem o seu próprio caminho, escreverem o seu destino.


All We Imagine as Light  (2024), de Payal Kapadia

Visionado na Sala do Cinema Ideal



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All We Imagine as Light, de Payal Kapadia (2024)

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