DA VAGA DE SALA - Outsiders | Ciclo de Cinema Independente Americano

Stéphane Pires • 3 de maio de 2024

The Grief of Others, de Patrick Wang: um plano que vale por todo o filme


Há uns dias revia 'Viagem a Tóquio' (1953), de Yasujiro Ozu, e durante a cena que se dá imediatamente após o funeral da matriarca - com o marido enviuvado, os quatro filhos e a afetuosa nora (viúva do filho já falecido) sentados no tatami à volta da mesa baixa, a degustarem a refeição - ia pensando no luto e no seu exercício, mediante o espaço físico onde é feito, e nas repercussões que daí advêm, prolongadas mais ou menos no tempo. Nessa cena de 'Viagem a Tóquio', os três filhos que vieram de longe estão já a preparar os regressos às suas vidas naquele próprio dia, no comboio expresso da noite, substituindo quaisquer viagens de memórias familiares em volta da mãe recém-falecida, pela viagem física, mundana, do quotidiano. Já o pai deles, agora viúvo, permanecerá praticamente sozinho - a única filha que vive com ele trabalha numa escola durante o dia -, ali, no espaço físico onde a esposa viveu e morreu, literalmente, a casa de ambos. Depois de todos terem partido, a vizinha espreita pela janela e ele, o viúvo, diz-lhe que agora os dias serão mais longos, levarão mais tempo a passar. Os filhos partiram, e com essa partida é como se tivessem deixado todo o luto a cargo do pai/marido, todo o luto por e para fazer, dia-a-dia, naquele espaço (físico) impregnado da presença da mãe/esposa (falecida). Entretanto pus-me também a pensar na morte recente da minha avó - viveu os derradeiros meses num lar de idosos - e da ausência de exercício de luto no espaço físico (dela) de quase toda uma vida: a sua casa, agora fechada e inabitada, e que, anteriormente, fora esse espaço físico onde (ela, a minha avó) fizera o exercício de luto diário do marido, que morrera uns anos antes. The Grief of Others (2015) [‘O Luto dos Outros’], de Patrick Wang - baseado no romance homónimo da também norte-americana Leah Hager Cohen - em exibição esta sexta-feira, no Outsiders Ciclo de Cinema Independente Americano, no Cinema São Jorge, com um magistral derradeiro plano, põe a casa da família como pano de fundo, como espaço-imagem omnipresente, como palco inamovível desse exercício humano do luto.


É um plano que vale por todo o filme; é um plano que eleva o filme para uma outra dimensão, bem diferente daquela em que estava meia-dúzia de minutos, mais coisa menos coisa, antes de acabar (o filme), ou seja, antes de começar o derradeiro plano. E quando assim é, não há volta a dar senão começar mesmo pelo final do filme. Depois de na noite anterior Ricky (Wendy Moniz) e John (Trevor St. John) comunicarem aos filhos Paul (Jeremy Shinder) e Biscuit (Oona Laurence) que decidiram, passado já algum tempo, fazer um funeral para o filho/irmão morto prematuramente, ainda recém-nascido, vemos, na manhã seguinte, a cozinha/espaço de refeições, com a câmara, relativamente baixa, estacionada o mais longe possível da porta, no lado oposto, potenciando o maior campo (possível) para dar campo à cena, passe a redundância. O pai John está ao fogão a fazer panquecas para o pequeno-almoço, entretanto surge a filha Biscuit, de pijama, acabada de acordar, pela porta chegam a mãe Ricky e o filho Paul, vindos da rua, carregando flores, girassóis; rapidamente voltam à rua, agora os quatro, batendo a porta da casa/cozinha, mas a câmara fica onde estava, sem mexer, e a imagem da cozinha, com a mesa e um girassol em cima dela, mantém-se; de repente vemos uma espécie de bola de cristal a abrir, aumentando paulatinamente, dentro do plano fixo da cozinha, e, dentro dela, vemos os quatro, a família, a descer a colina verde em direção ao lago; um a um vão depositando as flores, para no final largarem as cinzas; terminada a cerimónia muito particular, viram costas, sobem a colina e a bola de cristal, ecrã divino, vai diminuindo progressivamente até ao desaparecer deles no campo; novamente na cozinha, de onde nunca saímos porque a câmara, ali esquecida e especada, não nos deixa, ouvimos o barulho da porta que abre, desta feita quem entra é a luz, a luz do sol, a luz da redenção (da cura, da salvação, da libertação), tal como em 'Reunião' (2021), de Fran Kranz, outro filme do cinema independente americano, que já trouxemos em DA VAGA DE CASA, cujo tema central é também o luto. Aquele ritual de despedida do bebé falecido, simbólico na vontade de seguir em frente, de sarar, de libertar, feito fora de casa, mas com a casa sempre presente, simboliza também esse regenerar, esse revitalizar necessário do tal espaço físico onde o luto se deu, por todos, de diferentes formas e expressões.


Se o derradeiro plano vale por todo o filme, o plano inaugural serve para ilustrar o momento da perda, da morte, recorrendo à cor e ao som: por entre uma luz vermelha, que substitui o sangue e que captura todo o ecrã, vemos dois rostos, difusos, e ouvimos o ruído compassado que associamos à máquina de hospital, daquelas que fazem a ligação entre a vida e a morte. Findo este plano, vêm os créditos e começa o filme, não onde ficou propriamente após o primeiro plano. Durante grande parte do filme não somos confrontados com esse facto, com a morte do bebé do casal, mas sim com a forma desgarrada como a vida de pai, mãe e, consequentemente, filhos se vai desenrolando pós-acontecimento: entre afastamento, desconfiança, passa-responsabilidades, ausência, descuido. Ricky desliga-se de casa; John ausenta-se; Biscuit falta às aulas e faz disparates; Paul envolve-se em rixas na escola. Depois, há ainda Jess (Sonya Harum), filha de uma relação anterior de John, que está grávida, e vem viver uns tempos com a família, e Gordie (Mike Faist), um vizinho órfão, que perdeu o pai recentemente, e que se cruza com a família no momento em que socorre Biscuit numa peripécia. Jess e Gordie aparecem como que para estender a corrente do(s) luto(s) por que todos estão ou vão passar. Jess apoia o casal Ricky-John, de certa forma, com a sua presença em casa e, também, os miúdos, mesmo o cético Paul acaba por ceder aos encantos da sua presença; e anima Gordie, que ficou sozinho em casa após a morte do pai e que está a pensar livrar-se fisicamente do tal espaço físico: a casa, onde tropeça com a imagem do pai a toda a hora; Gordie acode Biscuit quando esta cai ao lago; Ricky conforta Jess, quando esta faz um aborto espontâneo, e diz-lhe que ela tem todo o direito de chorar, mesmo sendo uma criança que ela não desejava; John procura entender e ouvir Biscuit para perceber o porquê das suas (más) atitudes recentes.


Sem cargas emocionais excessivas, furtando-se à dramatização ou a um sentimentalismo a exacerbado, mas pondo a nu fraturas e consequências das diferentes expressões de exercício do luto, a corrente, entre os diferentes protagonistas, que guia e suporta The Grief of Others - a segunda, de três longas-metragens, de Patrick Wang, cujo cinema vale a pena conhecer melhor - quer manter-se sóbria no seu propósito, mas carece de uma certa profundidade, de uma envolvência que nos prenda e que nos faça ficar com eles. Mas há um 'senhor' plano (final) que vale por todo o filme.


The Grief of Others, de Patrick Wang

Visionado no Outsiders - Ciclo de Cinema Independente Americano, Cinema São Jorge

'The Grief of Others', de Patrick Wang (2015)

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