'Três Verões', de Sandra Kogut: uma janela de oportunidades
Clivagens entre classes sociais - classe alta e classe baixa -, representadas, no seio de casa, por patrões e empregados domésticos, respetivamente, eram apanágio das telenovelas do Brasil que irromperam abundantemente nos nossos ecrãs, nos anos 90, com o surgimento da SIC e, consequentemente, pela sua parceria com a Globo (canal brasileiro). Retrato sociológico de um Brasil em que as assimetrias entre ricos e pobres pareceram, e parecem, sempre demasiado profundas, deixando, por sinal, pouco ou nenhum espaço para o crescimento de uma classe média. Também o cinema (brasileiro), na sua intenção de, muitas vezes, refletir a sociedade, desenvolve narrativas em volta da coexistência entre estes dois mundos, que vivem tão perto e tão longe. 'Três Verões' (2019), de Sandra Kogut, traz-nos uma narrativa que tem um grande mérito: surpreende-nos! Com um desenrolar de acontecimentos, desde o plano inicial até uma fase bem avançada do filme, a apontar caminho para uma expectável injustiça, miséria e tragédia, eis que desemboca numa janela - consubstanciada no plano derradeiro - de oportunidades para a caseira, ou governanta, da mansão da família endinheirada, Mada [diminutivo de Madalena] (Regina Casé), porta-estandarte da classe operária (doméstica) e, por inerência, oportunidades também para os restantes quatro empregados da casa. Com um quê de 'Parasitas' (2019), de Bong Joon-ho, mas uma espécie de (uns) parasitas forçados, sem planos elaborados, mas com a força de reação, corporizada exemplarmente pela figura de Mada - já tinha visto Regina Casé num papel semelhante em 'Que Horas Ela Volta' (2015), de Anna Muylaert, e quão bem ela se saiu -, repleta de vida e de alma, a transbordar energia, de voz que se faz ouvir, de aura que se faz sentir, instintiva, genuína, desbocada, de coração na boca, persistentemente esperançosa na construção de um projeto de vida melhor. Mada enche a casa e enche o ecrã com a sua presença.
Voltando um pouco ao início, vamos perceber melhor como e porque 'Três Verões' surpreende. Seguindo à risca o nome do filme, Kogut divide a história em três atos, três partes, três verões, três dezembros (sim, no Brasil dezembro é sinónimo de verão), três épocas natalícias. O primeiro ato faz um retrato exemplar do ambiente típico de classe alta brasileira ali vivido por aquela família, a partir de uma festa de celebração de 20 anos de casamento dos donos da mansão - embutida na serra, com vista mar, inserida num condomínio de luxo, que Mada nos apresenta ao fazer o percurso num daqueles carrinhos de apoio ao golfe -, cheia de gente festiva, alegre, exuberante, com a câmara a deslizar pelos variados rostos que exalam esse bem-estar, essa tranquilidade, essa despreocupação com problemas da vida, em quase todos os rostos. A garrafa de Black Label quase despejada, largada ao pé da tela de projeção do vídeo de cenas de família, e os copos de champanhe poisados, sinalizam a vida boémia que por ali se vai dando. Extremamente bem caricaturado o casal, com Edgar (Otavio Muller), um pacato bolachudo, afável, presente-ausente, entre os sucessivos telefonemas - um deles com o iate e o mar como pano de fundo - e as reflexões silenciosas pós-conversas telefónicas; e com Marta (Gisele Froés), que parece viver alienada, anestesiada, distante dos negócios do marido. E quando assistimos à vulnerabilidade de Mada, facilmente ludibriada pelos meios e pelos fins do patrão, esperançosa que está em conseguir dinheiro para pagar o sinal de um negócio para o futuro dela, perspetivamos o início do fim (para Mada). No entanto, há um elemento da família, que naquela festa caseira aparece fugazmente para largar umas lágrimas pela mulher falecida que surge na projeção de memórias, o velho Senhor Lira (Rogerio Froes), pai do patrão Edgar, que, deixado depois para trás pela família, já durante o segundo ato (verão) do filme, será decisivo no desembocar de oportunidades para Mada e os demais. Mas, a câmara de Kogut mostra-nos o Senhor Lira a observar e a espreitar os movimentos dos empregados, já após a debandada de casa da família, envolta em crimes de corrupção, deixando-nos de pé atrás sobre a sua reação. Vemo-lo, na varanda, como que a dar corpo à câmara que filma de cima para baixo os empregados aos mergulhos festivos na faustosa piscina, ou, novamente na varanda do quarto, a ver o iate do filho a partir com os empregados que agora viraram agentes de tours turísticos, ou ainda, à porta da sala, a olhar para Mada, recostada no sofá a comer pipocas enquanto vê um conteúdo qualquer de suspense; ficamos também nós em suspenso a pensar no que ele poderá fazer.
E só depois de Lira - desgostoso pelo rumo de vida do filho, ele, um antigo professor que ali vive provisoriamente enquanto o seu 'AP' em Copacabana está em obras - abrir a janela de oportunidades para Mada, colocar-se do lado do bem, do lado justo, ainda que uma justiça (boa) feita pelas próprias mãos, é que definitivamente percebemos que Mada foi mesmo Abençoada, como lemos na sua t-shirt branca em letras pretas.
Já no terceiro e último ato, ou verão, ou dezembro, ou Natal, a multifacetada Mada ensaia o papel de atriz num anúncio publicitário levado a cabo na própria mansão, que, por estes dias, virou, entre outras coisas, estúdio de filmagens. Todavia, para Mada é mais fácil viver do que representar. Controlo, filtro, travão, automatismo e pós-verdade não combinam com Mada, e, nesta cena de repetição de takes para um anúncio (alusivo a compras na quadra natalícia), ainda tinha muito bem fresco na minha memória aquele plano fixo de meia-hora, ou mais, em 'Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo' (2023), do romeno Radu Jude, que vi há pouquíssimos dias, com múltiplas repetições de takes também para um anúncio promocional, mas de uma empresa austríaca ligada à segurança no trabalho, na Roménia. Em ambas as cenas, ambos os filmes, vemos (ambos) os protagonistas a experienciarem e a evidenciarem rejeição e impedimento natural em fugir à verdade, em contornar, em mentir ou dizer algo para manipular outrem - qualidade cada vez mais rarefeita nestes tempos e mundos modernos, onde Mada, no Brasil, e aquele protagonista do filme de Radu Jude, na Roménia, ainda não querem ou conseguem pertencer, mas ambos estão encurralados pela necessidade de pagar os custos destes tempos.
Champanhe, ou espumante, brinde, selfie de cinco rostos, janela aberta para o fogo de artifício do réveillon em Copacabana, no Rio de Janeiro - Mada e os restantes (empregados) partem para a festa e a janela (de oportunidades) fica aberta.
'Três Verões', de Sandra Kogut