DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 12 de maio de 2024

'O Pântano', de Lucrecia Martel: caos natural


"No cinema, o argumento é uma coisa muito pequena. É apenas a espuma no mar; o filme é tudo: a força marítima, os animais que vivem no mar...", assim escutei Lucrecia Martel dizer a uma plateia em Barcelona, não há muito tempo. Esse cinema em que parece que nada acontece, mas em que tudo está a acontecer, ou seja, a vida; a vida que corre ou que se arrasta e que liga o início ao final de 'O Pântano' (2001), a primeira longa-metragem de Lucrecia Martel - a autora argentina é a escolha DA VAGA REALIZADOR DO MÊS (de Maio). A começar quase como acaba, com um plano inaugural e um derradeiro plano a concederem-nos um céu cinzento por cima do verde das árvores e da serra, com mais neblina no final, ambos sonorizados pelo trovão que ameaça, pelos tiros que ecoam à distância e pelo ruído da fauna que ciranda pela natureza, a ligação entre estes dois planos - o princípio e o fim do filme - é iniciada e concluída pelo ruidoso arrastar humano das cadeiras da piscina, um movimento que, pelo contacto do metal com o chão, provoca incómodo, como se estivesse a arranhar-nos continuamente. É sob este arrastar da vida que arranha, ao qual a tríade vermelha dos instantes iniciais - pimentos, vinho rosé e sangue - confere sinal cromático de perigo, que a câmara sobe um pouco e fixa - isto depois de cambalear tonta numa sintonia perfeita com os passos periclitantes da protagonista Mecha (Garciela Borges) na tentativa gorada de recolha de copos na piscina -, captando em plongée [plano picado, de cima para baixo] os corpos inertes nas cadeiras da piscina (aquelas que arrastaram como quem arrasta a vida), de cabeças tombadas, indiferentes, letárgicos e incapazes; poucos instantes depois é a vez da câmara descer bem ao chão - como que descendo de classe, nível ou estrato social naquela Argentina - para nos mostrar a empregada (uma das índias, assim são denominadas pela patroa Mecha) a recolher os copos caídos e quebrados, vergada à carga de água que o céu e o trovão anunciavam. Em apenas meia dúzia de minutos de filme, Martel condensa toda a força do seu cinema - um cinema puro e total.


É Verão naquela Argentina paredes-meias com a Bolívia (zona fronteiriça de onde Lucrecia Martel é natural), o calor consome e amolece os corpos, a água da piscina cada vez mais bolorenta e esverdeada repulsa mais do que atrai, o vinho rosé a gelo é o refresco imprescindível do casal Mecha e Gregório (Martín Adjemián), proprietários da casa de campo; ela, uma zombie de óculos escuros e roupão; ele, um moribundo ignorado por todos; todos, são os filhos deste casal decadente e os filhos de Tali (Mercedes Morãin), a prima de Mecha, que por ali se juntam aos primos, vindos da vila mais próxima. Uns são crianças, outros adolescentes, outros jovens, juntos parecem imensos, e não é propriamente tarefa fácil perceber quem é quem. As televisões espalhadas nos quartos da casa desdobram-se em reportagens de supostos avistamentos da Virgem, a Virgen del Carmen [Nossa Senhora do Carmo], julgo, um manto de crença e crendice que paira e sobrevoa. O campo, a barragem e a serra dão espaço e azo às brincadeiras e aventuras dos mais novos, sempre prontos a deixarem o ócio e o tédio que o calor agudiza para os mais crescidos. Com tremenda naturalidade, com uma câmara que não se faz notar, repleta de sensibilidade, vemos os rostos dos miúdos muitas vezes em grandes planos de perfil, captando, desta forma, todo um lado genuíno de vivência do momento que um plano frontal - a poder desaguar num regard caméra - fatalmente teria mais dificuldade em transmitir-nos.


As dinâmicas de interação entre as crianças, entre os adolescentes, entre os jovens, entre todos juntos, entre irmãos, entre crescidos e graúdos, transportaram-me abundantemente para os filmes 'Verão 1993' (2017) e 'Alcarrás' (2022), de Carla Simón - uma das minhas cineastas atuais prediletas -, cujo cinema conheci antes do (cinema) de Martel, o que me permite perceber agora melhor o cinema de Simón, constatando a influência de Martel. É de uma evidência tremenda que estes filmes, de Martel e de Simón, se fizeram com muito conhecimento de causa, com muita experiência vivida, com intensa observação e absorção, faseadas ao longo das suas infâncias, adolescências e juventudes. A cena em que vemos as adultas Mecha e Tali a mandarem conversa fora no quarto e, entre elas, a pequena filha de Tali, como quem assiste silenciosamente a uma partida de ténis, apenas movendo a cabeça e desviando o olhar para quem está com a bola (a falar, neste caso), ou, noutro momento, a adolescente Moni, filha de Mecha, a presenciar a outra conversa de ambas, têm correspondência em filmes de Simón, ou seja, essa convivência, à vezes quase invisível, dos mais novos com os adultos, em que se ouve mais do que se fala, como sendo determinante (pelo menos, para alguns) no crescer, no filtrar da realidade, no molde de personalidade que se vai construindo. Também os mitos, as histórias que passam dos mais velhos para os mais novos, e que muitas vezes assombram e assustam - a história macabra que uma das filhas mais crescidas de Mecha conta sobre um cão que afinal era uma ratazana africana assusta e persegue os mais pequenos, especialmente o filho de Tali, sendo depois vítima dessa fobia/crença - são marcas hereditárias, familiares que marcam (passe a redundância) muitas vezes a infância; lembro-me bem de uma história que uma prima mais velha contava sobre um gato preto vagabundo da aldeia que incorporava os espíritos dos defuntos, talvez devido a essa história não suporte gatos até hoje. 


É mergulhando neste pântano familiar, atolados no caos natural que se vive naquela casa-família, que constatamos, também, o reverberar de uma crítica social, que salta além-cerca daquela quinta: à xenofobia e ao racismo face às pessoas das comunidades indígenas, da parte de Mecha com as empregadas domésticas e entre os miúdos (brancos e não-brancos); à crendice bacoca na religião, com as reportagens da TV argentina aos avistamentos da Virgem; à decadência de uma classe mais alta, ociosa, não trabalhadora, mergulhada em álcool naquela casa-quinta; à degradação da vida conjugal, sem um pingo de felicidade e relacionamento, que vemos em Mecha e Gregorio; à decadência e desestruturação familiar geral, em que assistimos à total desconexão daquela família, entre pais e filhos, filhos e pais - a única cena da família à mesa é um belo retrato, partindo do exterior para o interior, praticamente todos feridos e magoados (um zarolho, um arranhado, uma golpeada, um de nariz amolgado); o pai Gregorio levanta-se e pega na garrafa de vinho, a mãe Mecha segura e mantém a garrafa na mesa.


Não deixa de ser irónico que Martel tenha deixado para a família e para a casa de Tali - ela que parece viver refém e sufocada pela normalidade, a constância, a estrutura familiar que o marido advoga, em contraponto com o arrastar libertário total da família de Mecha - a consumação da fatalidade, uma fatalidade que vemos acontecer, mas que não é explorada depois; simplesmente acontece e pouco depois o filme acaba. No fim, é como se o condicionamento, o cuidado, o controlo por parte do marido de Tali, Rafael (Daniel Valenzuela) - há um plano em que vemos ele a lavar demoradamente a lama colada e trazida nas pernas da filha, vinda do casa-pântano -, fosse castigado, em detrimento do livre-arbítrio vivido no pântano de Mecha e Gregorio.


La Ciénaga, de Lucrecia Martel (2001)

Visionado em Filmin Portugal

' O Pântano', de Lucrecia Martel (2001)

Compartilhar

'3 Rostos'
Por Stéphane Pires 20 de fevereiro de 2025
'3 Rostos', de Jafar Panahi: três mulheres, três tempos, três sombras
'A Semente do Figo Sagrado
Por Stéphane Pires 17 de fevereiro de 2025
'A Semente do Figo Sagrado', de Mohammad Rasoulof: fé, submissão e obediência absoluta
'Nada a Perder'
Por Stéphane Pires 6 de fevereiro de 2025
'Nada a Perder', de Delphine Deloget: um corpo de emoções como arma
Mais Posts
Share by: