'A Rapariga Santa', de Lucrecia Martel: purificação e limpeza espiritual
Sou um fã incondicional de águas e estâncias termais. Tenho muita pena que em Portugal tenhamos assistido nas últimas décadas ao declínio significativo do termalismo como atividade terapêutica e de lazer, simultaneamente, como espaço de férias relaxantes e revigorantes, como fora outrora. Em 2017, numa viagem a Budapeste - as termas são rotineiras, variadas, de interior e exterior, completamente disseminadas -, deliciei-me nos banhos fumegantes de um clássico hotel termal, contrastando com o frio cortante, de neve, que se sentia na rua. Pouco tempo depois, decidi radicar-me uns 15 dias nas Termas da Sulfúrea, em Cabeço de Vide (Alto Alentejo), na busca de cura para uma sinusite crónica e de uma pausa para sossego. Encontrei um espaço terapêutico, cingido a isso mesmo, nada mais - para tratamentos com hora marcada, numa curta fração de tempo de todo um dia. O lazer, o relaxamento e o convívio com outros pertencem a um tempo que ficou lá atrás, reservado às memórias de quem conta histórias, ao cinema - como não lembrar de 'Oito e Meio', de Federico Fellini (1963) - e à imaginação. 'A Rapariga Santa' (2004), segunda longa-metragem de Lucrecia Martel - a produção cabe a Pedro Almodôvar, precisamente no ano em que o cineasta espanhol realiza 'Má Educação' -, leva-nos para o interior de um hotel termal em Salta (Argentina) - terra de Martel - que por aqueles dias recebe um congresso de médicos. A piscina de água esverdeada de 'O Pântano' (2001) dá lugar à piscina de água quente em 'A Rapariga Santa', onde assistimos a uma versão mais maturada de história (de vida), por meio de espiritualidade, sexualidade, sedução, sensualidade e tensão constantes. O desejo e o impulso sexuais marcam ponto de encontro com o chamamento divino e a missão espiritual, um encontro fantasioso entre sexualidade e religião; a sedução convencional, normalizada e padronizada socialmente, é a terceira via.
O doutor Jano (Carlos Belloso) é um dos médicos que vem participar no congresso que irá decorrer no hotel de termas da divorciada Helena (Mercedes Morán), que ali vive com a filha Amalia (María Alché), enquanto gere o negócio. Assim que vemos o doutor Jano a chegar ao hotel, observamos o seu olhar indiscreto e cobiçoso pela janela entrecortada, e depois pela porta entreaberta, de um dos quartos, para as costas e pernas salientes num vestido - é Helena. Mas é fora do hotel, longe dos outros médicos, como anónimo numa pequena multidão - assistem a uma performance artística (musical) de rua - que o doutor Jano dá azo ao desejo e impulso sexuais, aproximando-se até ao contacto físico - sem usar as mãos, tal e qual como o artista -, por trás de uma rapariga, num ato premeditado de assédio sexual. A rapariga é Amalia, uma adolescente a caminho da juventude, que alterna a vida no hotel da mãe com a catequese, sempre com a inseparável amiga Josefina (Julieta Zylberberg). Vemo-las, com rostos aproximados, entre outras raparigas, no plano que abre o filme, em que os seus olhares reprovam, fulminam e desconfiam do ar angelical da catequista que canta. Instadas pela catequista a encontrarem a sua vocação (espiritual), rogando-lhes que atentem ao chamamento de Deus, Amalia crê que aquele toque de assédio sexual do doutor Jano no seu corpo - que se dá e que se prolonga - é um chamamento divino, e desata o início da sua missão espiritual. É pois numa sedução convencional, normalizada e padronizada socialmente, por entre conversas no bar, mergulhos na piscina, e à mesa de jantar, entre dois adultos, que o doutor Jano - sem saber que Amalia vive no hotel e é filha de Helena - encontra conforto e abrigo para o autocontrolo (que também deseja): em Helena.
É deveras interessante descortinarmos que cada um dos três protagonistas principais tem uma espécie de espelho interior, que reflete e reverbera o ser escondido de cada um deles - em outras três personagens -, que contrasta com a imagem que emanam . O doutor Jano tem no doutor Versalio (Arturo Goetz), com quem partilha o quarto forçosamente na primeira noite, o seu espelho interior - expansivo, descontraído, vaidoso, despreocupadamente atiradiço com as mulheres, sem receio de consequências públicas pelo seu comportamento. Amalia tem em Josefina o seu espelho interior - perversa, repleta de fantasia e desejo sexual. Helena tem no irmão Freddy (Alejandro Urdapilleta) o seu espelho interior - melancolia, tristeza, carga emocional pesada fruto de um passado familiar que já não existe. Há uma cena em que parece que o filme deixa de ser filme e dá lugar à vida - é o cinema puro de Martel, que, também, preservando a naturalidade das cenas e das conversas, não raras vezes deixa a câmara imóvel perante o movimento dos protagonistas, mesmo que isso leve a um desenquadramento, com cabeças cortadas ou corpos sem cabeça; é o esvaziar do efeito snipper da câmara -, à vida de Freddy, quando este subitamente abandona o quarto do doutor Jano para ligar para o Chile, para tentar falar com os filhos, ignorando o propósito daquele momento (no quarto de Jano) para a narrativa. Entre os irmãos Helena e Freddy observamos um certo prolongamento da relação de fisicalidade que vimos entre o filho e a filha (irmãos) mais velhos do casal Mecha-Gregorio em 'O Pântano': partilham cama, invadem a privacidade um do outro…
Se em 'O Pântano' tínhamos presentes espiritualidade (os avistamentos da Virgem constantemente na televisão), sexualidade (sempre na ordem do imaginário), sensualidade, sedução, tensão (o sangue, os tiros a ecoarem na serra, os miúdos com as espingardas, os movimentos bruscos, mantinham-nos em constante alerta de perigo), em 'A Rapariga Santa' dá-se uma maturação, vai mais profundo. A espiritualidade e a sexualidade casam uma na outra, além do assédio do doutor Jano a Amalia, e a missiva dela em busca dele, há a fisicalidade e o beijo entre as duas pré-noviças(?) Amalia e Josefina; o relacionamento sexual (proibido, porque pré-nupcial) de Josefina com um rapaz; ou a masturbação de Amalia em que a câmara consegue o melhor enquadramento para os olhos que reviram e as narinas que se movem vigorosamente pela força do ar, que se ouve, que sai e entra a toda a velocidade. A sensualidade está colada ao corpo de Helena, com as cores quentes protagonizadas pela luz do sol que entra pela janela do quarto a refletir nas pernas sedosas. A sedução recíproca de Helena e do doutor Jano vai crescendo ao longo do filme e faz-se sentir significativamente. A tensão está presente do início ao fim, assente em particular na figura extremamente bem construída do doutor Jano, incluindo os seus tiques, maneirismos, olhares, que nos convocam para a imagem de estripador, violador, serial killer... sempre neste role, reforçada pela câmara que salta amiúde para a nuca dele, fazendo-nos pensar nos movimentos, nos passos que ele poderá dar de seguida; e ainda pelos planos aproximados de rosto, em que a sensação de ameaça parece aumentar proporcionalmente à escala em que o vemos (o rosto). Tensão também agudizada por toda uma imagética de clausura, de encurralamento, a partir das várias presenças do doutor Jano no elevador do hotel, com porta de grade, inclusive acompanhado por Amalia numa ocasião, ou na cabine telefónica, ou nos corredores junto às portas dos quartos.
Quase no final, a cena repetida (várias vezes) da empregada de hotel a borrifar spray ambientador, com o respetivo ruído sempre presente, remete-nos agora para a purificação, do ar, do espaço, daquelas vidas; purificação seguida (e consolidada) depois pelo som da reposição de água na piscina - vemos o homem da manutenção a passar -, a limpeza (espiritual) necessária.
'A Rapariga Santa', de Lucrecia Martel (2004)