DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 24 de abril de 2024

'Mal Viver', de João Canijo: um triângulo (geracional) deformado


Lembro-me bem desse verão de 2012 em que decidira escolher a Praia de Ofir para as primeiras férias (veraneantes) de família com a minha filha - ainda bebé de colo ou de carrinho de mão. Malogradamente, o vento não nos deu descanso por esses dias e a praia tornou-se quase impraticável. Como a vida não é só feita de azar, fomos bafejados pela sorte de nos termos alojado no Hotel Parque Rio (atualmente ganhou Vintage no nome), abrigado, escondido, embutido no sossego da natureza, de um bosque, no meio de um pinhal. Ali, estávamos protegidos das tempestades de areia, tínhamos uma generosa piscina, silenciosa por aqueles dias, sombras das árvores para fazer face ao calor, tranquilidade suprema, bar-restaurante de apoio para bebericar e petiscar, vista para contemplar, mas, mais do que isso, para imaginar, para viajar, pela força da harmonia estabelecida entre a arquitetura do edifício e a paisagem natural. Pois bem, 11 anos depois, este hotel volta a entrar-me pelos olhos adentro, agora pela lente da câmara de João Canijo (com Leonor Teles na direção de Fotografia), desta feita para 'Mal Viver' (2023) - deixemos 'Viver Mal' (2023), o outro filme do díptico, para um outro escrito. Sou admirador do cinema de Canijo desde que vi 'Mal Nascida' (2007), aquela história macabra e medonha numa aldeia de Trás-os-Montes; e, como transmontano que sou, seduziu-me, para sempre, aquela imagem da garrafa de Ricard (o pastis que os franceses adoram) a servir de vasilhame para o vinho tinto caseiro, fruto das uvas da terra; esta imagem (de marca), tão realista, acompanhou a minha infância-adolescência em casa do meu avô ou de outros parentes idosos, que aproveitavam as garrafas desta bebida - recebiam como oferenda dos familiares emigrados em França - para, depois de vazia, engarrafarem e servirem o vinho, dando nova e prolongada vida àquele rótulo da garrafa. Se 'Mal Nascida' fez-me viajar pelas minhas origens rurais transmontanas, 'Mal Viver' fez-me viajar pelo melhor cinema que existe, aquele que gosto de denominar de cinema R.E.R.R. (realista-existencialista-reflexivo-relacional), poisando um pouco em [Ingmar] Bergman, um pouco em [Rainer] Fassbinder, um pouco em [Nuri Bilge] Ceylan.


Para Bergman remete-nos a atmosfera do filme, não excluindo os excertos sinfónicos do compositor inglês Edward Elgar que sonorizam as braçadas regulares, madrugadoras e solitárias de Piedade (Anabela Moreira) na piscina; remete-nos a densidade emocional das relações vividas no interior daquela família-casa-hotel; remete-nos o tema da morte e a angústia existencial; remete-nos a crueldade humana; remete-nos a neurose; remete-nos o narcisismo; remete-nos o carpir mágoas com as fraturas do passado; e se quisermos pensar na relação mãe-filha, bem como nas irrepreensíveis e magistrais representações de Rita Blanco (Sara, mãe) e de Anabela Moreira (Piedade, filha), teremos em 'Sonata de Outono' (1978) - com aquele digladiar imortal, para a história do cinema, entre mãe e filha, Ingrid Bergman e Liv Ullmann, respetivamente - o melhor espelho, neste viajar e poisar um pouco pelo mundo bergmaniano.


Para Fassbinder remetem-nos os enquadramentos, aqueles que fazem as imagens falar. Com a câmara no(s) sítio(s) certo(s), os magistrais enquadramentos em 'Mal Viver' adensam a atmosfera (quer no exterior: piscina e área envolvente, incluindo fachada do hotel e arborização; quer no interior: quartos, receção, escadas, sala de jantar, cozinha, sala de estar); retratam singularmente o ambiente; caracterizam protagonistas, nas diferentes posturas, estados de alma, disposições e predisposições; desenvolvem as relações entre elas - vai além do retratar, faz-nos pensar, imaginar, equacionar; 'Roleta Chinesa' (1976) - com o marido, mulher, os respetivos amantes, e a filha, num autêntico jogo de vida ou morte, fechados numa casa de campo - é o melhor reflexo deste viajar e poisar um pouco no cinema do génio alemão.

Para Ceylan remetem-nos os demorados planos fixos, sem pressas, respeitando o viver, o sentir e o pensar o filme, potenciando quer a contemplação (especialmente os planos exteriores, sejam diurnos, noturnos, ou de lusco-fusco) quer a reflexão (maioritariamente com Piedade e a filha Salomé [Madalena Almeida] com a sombra de Sara); potenciando a construção da relação protagonista-paisagem, uma relação existencialista (muito alicerçada nos movimentos de Piedade na área exterior, na piscina, dentro e em volta dela, incluindo os momentos que antecedem o nadar, com o colocar da touca e a passagem pelo chuveiro, ao longo de todo o filme, desde o plano inaugural, geral-fixo); 'Sono de Inverno' (2014) - a história decorre maioritariamente dentro de um velho e misterioso hotel, e as relações da família-proprietária vivem dilemas existenciais - é o melhor revérbero deste viajar e poisar um pouco na filmografia do, quiçá, maior mestre vivo do cinema.


Piedade é filha de Sara e mãe de Salomé: as três formam o triângulo (geracional) deformado. Piedade sente-se incompreendida pela mãe e pela filha; Sara sente-se incompreendida pela filha; Salomé sente-se incompreendida pela mãe. Piedade é uma mulher-estátua, dando vida, ainda que morta por dentro, à estátua de um corpo feminino que vemos junto à piscina; neurótica, bipolar, doente e perturbada aos olhos da família; deprimida; sofrível, impávida, mas não serena, uma espécie de zombie ou alma penada, aos nossos olhos; de forma rígida, quase geométrica, tremendamente bem vertida na sua corporalidade, Piedade mantém-se funcional, mecânica, nas suas rotinas diárias, incluindo as tarefas no hotel. Sara, a matriarca, é dominadora, castradora, narcisista, manipuladora, carrega o fado e o fardo da fraqueza das filhas (aqui aos olhos dela), perturbada, também, mas pelo fracasso familiar. Salomé, de regresso à mãe e à avó, após a morte do pai, ciranda pelo hotel meio-perdida, dividida, ainda com réstia de esperança na relação com a mãe, procura respostas e vai submergindo naquela realidade enclausurada nas paredes do hotel, que nós, espectadores, vamos vendo e espreitando, pela fachada, pelas janelas, pelas portas semiabertas, pelos vidros das portas, pelo reflexo dos espelhos, como autênticos voyeurs. Raquel (Cleia Almeida) e Ângela (Vera Barreto) circulam à volta do triângulo e dão-lhe contexto. Raquel é a outra filha de Sara; Ângela é sobrinha de Sara. Raquel traz uma certa portugalidade ao filme, com palavrões sempre prontos a saírem da boca, é terra à terra, faz o contraponto com a irmã Piedade; já a prima Ângela é a faz-tudo do hotel, de chef (anónima) do restaurante a funcionária da limpeza, conseguindo ainda dar suporte emocional a todas as mulheres da família.


Com uma panóplia extensa e variada de planos que contam bem a história, recorri a um difícil exercício de restringir a cinco (planos) o melhor e mais belo resumo do filme.


Plano número 1 (fixo): Piedade no sofá da sala comum a ver o Joker (concurso da RTP1) com a filha Salomé, havendo alguma distância (física) entre elas, Salomé vai-se aproximando da mãe, recosta-se quase no colo dela, Piedade descruza a perna para acolher a cabeça de Salomé e esboça uma carícia; entretanto, surge em reflexo no vidro escuro da noite o vulto de Sara, que fica imóvel, prolongadamente, na sombra, e não se mostra a ambas.


Plano número 2 (fixo): Piedade e Salomé estão na cozinha, de frente uma para a outra, Piedade abre uma carta e lê a Salomé (um relatório psicológico sobre Salomé), Sara entra na cozinha e para, desenhando-se visualmente um triângulo; com a câmara estacionária, Sara movimenta-se, sai fora-de-campo e volta do outro lado das duas, que se mantêm imóveis, refazendo novo triângulo.


Plano número 3 (fixo): à noite, no quarto, Salomé confronta Piedade sobre o amor que a mãe sente ou não por ela. Piedade fala-lhe de Salomé enquanto recém-nascida, inicialmente de costas para ela, e, quando se volta, o espelho devolve duas Piedades, a verbalizarem, de frente para Salomé: a bipolaridade de Piedade ali espelhada, enquanto mulher, enquanto mãe que, com ternura, revela a sua incapacidade para lidar com aquele bebé, a mesma incapacidade de lidar agora com a filha adulta.


Plano número 4 (plongée [picado]): no sofá vemos quatro das cinco mulheres da família a revisitarem álbuns de fotografias do passado, apesar das diferenças todas convivem naquele momento; no sofá está um lugar livre, literalmente, seria o lugar de Piedade, ausente daquela reunião familiar. Piedade não espreita de cima, onde está a câmara, mas espreita no vidro da porta, quando o plano muda.


Plano número 5 (fixo): com câmara a filmar através do vidro, salvaguardando a nossa posição de observadores, também no momento trágico, o vermelho da sempre impreterível touca de Piedade, o vermelho da estrutura metálica para mergulhos na piscina, fixamente filmado, várias vezes ao longo do filme, tem continuidade neste plano no vermelho dos sofás e no vermelho das carrinhas dos bombeiros.

De 'Mal Nascida', passando por 'Noite Escura' (2004), 'Sangue do Meu Sangue' (2011), 'É o Amor' (2013), ou 'Fátima' (2017), até aqui, João Canijo assina com 'Mal Viver' um filme que é um verdadeiro tratado, uma obra-prima. Parece-me que a História encarregar-se-á de lhe dar o lugar que merece, entre as melhores obras produzidas pelo cinema português até hoje.


'Mal Viver', de João Canijo (2023)

Visionado na Sala do Cinema Ideal e em Filmin Portugal

'Mal Viver, de João Canijo (2023)

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