Confidenza, de Daniele Luchetti: na vertigem do segredo
Casa cheia, Sala Manoel de Oliveira a rebentar pelas costuras, este domingo, no Cinema São Jorge, na Sessão de Encerramento da Festa do Cinema Italiano, todos para verem o recentíssimo Confidenza (2024) [Confiança], de Daniele Luchetti. Baseado no romance (homónimo) de Domenico Starnone - já outros livros do autor tinham dado filmes para Luchetti - e com a composição sonora do magistral Thom Yorke, Confidenza vai-nos mantendo em vertigem, mais ou menos controlada, até ao epílogo, confrontando-nos com a imaginação, naquilo que é a sua força e a sua fraqueza, na sua capacidade de produzir imagens mentais originadas por emoções e, também, na sua aproximação ou afastamento à realidade consciente. O professor Pietro (Elio Germano) é a mente que imagina e nos põe a imaginar com ele - atuação extremamente elogiada, inclusive na breve apresentação que antecedeu o visionamento do filme -, mas é Teresa (Federica Rosellini) a chave, ou a peça-chave, da bem sucedida força visual da história. Sim, o seu rosto, com toda a expressividade, incluindo o olhar profundo, que perfura, e o sorriso acutilante, que desarranja, constrói a figura capaz de perturbar uma mente por toda a vida. Desejo, atração, mistério, desafio, acutilância, imprevisibilidade, enigma, profundidade emanam de Teresa. Ao longo do filme, que acompanha uns bons quarenta anos de vida destas duas personagens, mais separados do que juntos, o rosto de Teresa ganha apenas umas rugas, verificando-se uma cristalização da sua imagem-figura, desde os tempos de aluna do final do secundário, contrariamente a Pietro, cuja imagem-figura vai sofrendo mutações sucessivas com a passagem do tempo. Essa cristalização faz de Teresa inesquecível no filme e de Federica Rosellini inesquecível para lá do filme.
Pietro é professor de literatura no secundário, Teresa é sua aluna, mas é de matemática que gosta - "a literatura mente, a matemática diz a verdade", diz-lhe ela no momento em que se declara a ele e ele nega, não por muito tempo, a reciprocidade do desejo -, isto no início das vidas de ambos no filme, mas este (o filme) começa com Pietro já velho, no presente, a fazer-nos sentir a primeira vertigem, pendurado no parapeito da janela, como quem faz equilibrismo, pronto a voar, num prédio cuja altura cá para baixo - que a câmara nos dá num de muitos plongées [planos picados, de cima para baixo] que vamos vendo ao longo do filme, sinal ou sinais das várias vertigens que vamos sentindo nos topos a olhar para baixo, à vezes sozinhos, outras vezes acompanhando Pietro numa espécie de vontade imaginária de voar para o abismo da morte - assusta de ver. Mais assustados ficamos quando logo de seguida vemos Pietro ser empurrado pela janela por uma mulher: era Teresa, mas era só imaginação dele (Ufa!). A imaginação de Pietro por esta altura só já emana medo, medo de Teresa e do que ela ou a presença dela pode fazer-lhe; antes, a imaginação de Pietro emanara a raiva ou a fúria, ao agredi-la violentamente, brutalmente, ao ponto de fazer saltar da cadeira a senhora que via o filme à minha frente, mesmo antecipando tratar-se de mais uma imagem imaginária produzida pela sua mente; e emanara também a vontade de ver Teresa desaparecer para sempre ao imaginar o abalroamento dela na mobylette por um camião.
Do fascínio, de olhos a brilhar, pela brilhante aluna, diferenciadora dos demais, até à vontade de vê-la desaparecer para a eternidade, à raiva e à fúria, e ao medo, vai o tempo de um encantamento mútuo, de uma vida a dois curta e clandestina (para ele) e de um jogo de segredos numa noite esparramados no sofá: numa tentativa de aproximar o nó das relações humanas ao nó matemático da topologia - algo como unir as pontas de modo a que não podem ser desfeitas - Teresa e Pietro confiam e confidenciam segredos um ao outro, literalmente, deixando-nos a estender a orelha, sem sucesso, para ouvir o que é segredado. Se até este momento já tínhamos sido confrontados com uma imagem da cama de ambos, à noite, a ganhar perspetiva de estar a erguer-se na cabeceira - pelo movimento da câmara - e, consequentemente, os dois, abraçados, a afundarem-se; ou atraídos pelo suspense de um plano-sequência em que percorremos lentamente a casa vazia de pessoas e apinhada de papéis e livros espojados até chegarmos à casa de banho onde a câmara estaciona e tranquiliza-nos com a imagem dos dois num banho de imersão, na verdade, é após a troca de segredos que o sangue aparece (mesmo sendo fruto do copo que parte a lavar), o rosto de Teresa endurece e ela desaparece, ainda que não para sempre.
Quando Teresa reaparece para Pietro este está a uma semana de casar com Nadia (Vittoria Puccini), também ela matemática, fora professora de Teresa na mesma escola onde Pietro leciona. Almoçam juntos e Teresa intimida Pietro com o seu sorriso acutilante, desafiador, a roçar o sinistro. Ela sabe o que ele fez, ela gosta dele sabendo quem ele realmente é, aponta-lhe à cara o cinismo e a superficialidade, gosta dele, mas não o idolatra, não o bajula, não o coloca nos píncaros onde o situam os antigos alunos, a esposa Nadia - com o passar do tempo, aceitando essa condição como tábua de salvação do matrimónio -, a sua editora (entretanto publica livros sobre o ensino, defendo a pedagogia do afeto) e os demais. Pietro perturba-se, ganha pavor de Teresa e quantos mais anos passam mais o medo toma conta dele: a filha, a esposa, a sua reputação no ministério da educação, o seu legado enquanto visionário e reformador do ensino, tudo está em causa. A presença da polícia na escola assusta-o; no casamento a câmara leva-nos num lento travelling passadeira vermelha adiante até uma porta de fundo negro; à porta de casa poisa um corvo negro na árvore. Mesmo ausente - é uma cientista prestigiada, vive e trabalha fora do país -, Teresa ganha outras formas.
Com pompa e circunstância, recorrendo à figura do presidente da república, numa homenagem à carreira de Pietro, o clímax começa a ganhar forma e Teresa está pronta para desafiar Pietro. De plongée para contre-plongée [plano contra-picado, de baixo para cima], alternando, Teresa sorri (uma vez mais), pelo vidro da janela do edifício, para Pietro, que anda às voltas sem sair do lugar; ela está em cima e por cima, com todo o poder, ele está em baixo, quase a cair por terra. Da janela para o púlpito, no discurso de homenagem a Pietro, Teresa cresce mais ainda: o contre-plongée engrandece-a e a talha dourada por trás dela endeusa-a. O choro da filha de Pietro, já adulta, é revelador da queda do pedestal, do pai, aos olhos da filha, não aos olhos de Nadia. Já nos créditos finais, como derradeiro plano, revemos um insert de dois limões em decomposição, esverdeados pelo bolor, a caminho do apodrecimento, da putrefação: como o final da longa história de Pietro e Teresa.
Confidenza, anunciado como um thriller, pela boa música que Thom Yorke compôs e pelo sentido oportuno na sua utilização propicia uma linearidade no suspense, como que a percorrer uma vida inteira, mas sem correr, sem acelerar, deixando-nos e pedindo-nos, de certo modo, que pensemos o filme, ao longo dele.
Confidenza, de Daniele Luchetti (2024)