DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
'O Clube', de Pablo Larraín: segredos da casa amarela
"Sois como os padres a comer", vezes sem conta ouvi o meu avô materno (transmontano) dizer isto sempre que o silêncio imperava numa mesa de refeições. "Os padres é que à mesa não falam, só comem", reforçava ele, abundantemente. E foi assim que, mais facilmente, antevi: aqueles quatro homens mais velhos sentados à volta de uma mesa redonda, na companhia de uma mulher, empenhados na refeição, cujo único ruído presente é o trabalhar dos talheres, só poderiam ser padres. O padre Vidal (Alfredo Castro), o padre Ortega (Alejando Goic), o padre Silva (Jaime Vedell), o padre Ramirez (Alejandro Sieveking) e a freira Mónica (Antonia Zegers) são os anfitriões de 'O Clube' (2015), de Pablo Larraín (escolha para Dezembro em DA VAGA REALIZADOR DO MÊS), numa pequena terra costeira chilena, La Boca.
Tive uma educação católica praticante, até à juventude, muito por força da tradição familiar e do enraizamento social e cultural da Igreja (católica) na terra onde cresci; penso que só fui crente enquanto criança pequena que rezava para que o seu clube de futebol ganhasse; atualmente não tenho qualquer crença ou fé religiosa, pelo que devo ser um ateu. Todavia, acredito que as pessoas devotas a uma religião, seja ela qual for, tendencialmente têm menos inquietações, menos dilemas, menos questionamentos, e, por sinal, mais apaziguamento, o que até pode ser bastante bom. Voltando à Igreja católica, se há coisas que vejo com total indiferença, há outras que são preocupantes, em especial a perpetuação continuada de uma justiça eclesiástica para julgar (ou omitir) crimes, em vez de tribunais judiciais. 'O Clube' abre-nos as portas de uma casa amarela, à beira-mar, que visa ser, nas palavras do diretor espiritual, "um centro de oração e penitência, um lugar de arrependimento".
"Viu Deus que a luz era boa e separou a luz das trevas": eis a passagem da Bíblia que Larraín nos convida a ler, num fundo preto, antes de entrarmos n''O Clube'. A imagem é enevoada, o céu é cinzento, escuro, a música é tenebrosa; o filme poderia muito bem ser a preto e branco, com toda uma atmosfera e uma densidade místicas a remeterem para 'Luz de Inverno' (1963), de Ingmar Bergman, ou para 'Nostalgia' (1983), de Andrei Tarkovsky; porém Larraín quis pintar à letra o versículo da bíblia e pelas cores conseguiu reforçar e enfatizar a destrinça entre a luz e a sua ausência (as trevas) nos momentos em que nos fez ver a luminosidade do sol: num dos planos iniciais do filme vemos os raios solares, ao longe, no horizonte do padre Vidal, a refletirem no mar; e, quase no final, vemos a aurora, num plano geral fixo, relativamente demorado, a emanar a luz necessária para um renascer.
Naquilo que aparenta ser uma vida rotineira e relativamente harmoniosa, os quatro padres e a freira vão passando o tempo entre tarefas de casa, a horta, refeições na mesa redonda, álcool, também, e passeios entretidos pela praia com o treino do cão (um galgo) para as corridas com apostas. Uma espécie de spa, aos olhos do jovem padre Garcia (Marcelo Alonso), psicólogo e diretor espiritual, que vem viver (e investigar) para a casa amarela após a morte do padre Lazcano (José Soza), que seria o quinto padre residente, mas que rapidamente sai de cena, levando com ele a autoria e a responsabilidade material dos crimes de abuso de menores que infligiu e que são ecoados pelo agora adulto Sandokan (Roberto Farias), ou anjo negro, como o apelidou o já demente padre Ramirez, ou cordeiro de Deus, como o próprio se autodenominou. Nas imediações da casa amarela, o anjo negro Sandokan discorre em modo de longo sermão religioso, ou de oração, os atos horrendos de que foi vítima ainda enquanto criança pelo padre Lazcano, desestabilizando toda a paz de espírito vivida na casa amarela. A figura do anjo negro assenta divinamente em Sandokan, um homem de cabelo escuro e de barba também ela escura, e cerrada, sozinho, sem rumo, destruído, carregando com ele todo um peso de sofrimento irreparável e de danos irrecuperáveis. Com a morte do padre Lazcano, e o esfregar vigoroso das manchas do seu sangue pela freira Mónica, o anjo negro não desaparece, vai sendo avistado em diferentes locais pelos residentes da casa amarela - há um excelente plano na praia em que ele (Sandokan) está pendurado no topo de uma casa e é avistado de baixo pelo padre Vidal (que invariavelmente vagueia com o seu cão), continuando a arrastar com ele a culpa e os pecados da Igreja: autora e responsável moral dos crimes de que foi alvo.
Nos interrogatórios individuais, quase em registo de confessionário - vemos grandes planos de rosto de cada um dos padres, para melhor constatarmos, mais do que decifrarmos, os seus não arrependimentos e a ausência de quaisquer pesos de consciência -, levados a cabo pelo Padre Garcia, essencialmente ficamos a saber que nem todos estão acusados (pela justiça eclesiástica, claro) de crimes de pedofilia, há, entre os crimes que ouvimos ao de leve, retirada de crianças a mães, colaboração com homicídios e torturas, durante a ditadura chilena de Pinochet, e vazio, quando se trata do padre Ramirez (que de nada se lembra, a não ser do ecoar das palavras recentes do anjo negro). Ao não atribuir a todos o rótulo de pedófilos, Larraín está a esvaziar o foco no ódio e na culpabilidade no plano individual, que podemos sentir por aquelas personagens, desviando-nos para uma reflexão e um juízo crítico mais transversal sobre a responsabilização (e a culpa, claro) da Igreja, num todo; Igreja essa que, além de encobrir crimes de abuso de menores, encobre também outros crimes contra a humanidade que foram levados a cabo pelo regime de Pinochet. Não assistimos, portanto, a uma demonização daqueles padres, por aquilo que vamos vendo, ainda que interiormente cada um de nós possa fazê-la; diria até que a freira Mónica é a face mais visível do maquiavelismo e da maldade, bem evidente naquele olhar de satisfação no consumar da conquista, enquanto assiste ao espancamento de Sandokan, após operação, supostamente orquestrada a dois com o padre Garcia, para silenciar o inocente. Orquestrada também de forma sublime por Larraín o executar da missão (criminosa) de cada um dos envolvidos: o padre Garcia reza, entregando a sorte ao poder divino; o padre Ortega usa os vidros das suas garrafas de bebidas (alcoólicas); o padre Silva empunha a sua enxada com que cava a horta; a freira Mónica silencia a vítima silenciosamente (passe a redundância).
A freira Mónica acaba por emergir mesmo como a figura defensora da velha Igreja, representada pelos quatro padres que zela, contra a Igreja renovadora, que parece querer tentar corrigir erros do passado, personalizada no padre Garcia. Conseguimos também sentir visualmente o emergir do seu poder na alternância de planos em plongée [picado, de cima para baixo] e contre-plongée [ contra-picado, de baixo para cima] quando vemos a sua altivez perante a vulnerabilidade do também sovado, duplamente até, diria, padre Vidal, enquadrados com um altar e uma cruz.
O cordeiro de Deus é, por fim, sacrificado e servido, ainda que vivo por fora e morto por dentro, sustentado por uma infindável lista medicamentosa em que cada comprimido debitado corresponde à cicatriz deixada pelos abusos sexuais sofridos. Nova e velha Igreja pactuam e compactuam na perpetuação da justiça eclesiástica, ou divina, pois "só Deus sabe", repete a freira Mónica, num círculo de eterno retorno em que pecado/crime e encobrimento se envolvem e andam às voltas, como o cão, o galgo do padre Vidal, na praia em busca do isco na vara; e, consequentemente, a Igreja mantém a sua considerável distância face às pessoas, tão grande como aquela panorâmica que foi ao mar e rodou lentamente para nos mostrar, na praia, os surfistas que estavam logo ali ao lado do padre Vidal.
El club, Pablo Larraín (2015)
Visionado em Fimin Portugal

'O Clube', de Pablo Larrain (2015)