'Fechar os Olhos', de Víctor Erice: o poder da memória e o poder do cinema
Foi por meio de uma insistente e sucessiva submissão a uma memória visual e narrativa, de olhos e de olhares, e também de sonoridade, que fui vendo o 'Fechar os Olhos' (2023), de Víctor Erice, enquanto relembrava 'O Segredo dos seus Olhos' (2009), de Juan José Campanella. Definitivamente os meus olhos viram ou quiseram ver semelhanças e encontros entre as duas obras, do génio espanhol e do génio argentino, ambas a entregarem aos Ojos [olhos] a resposta, ou a ausência dela, para o(s) mistério(s) da(s) história(s). A memória atormenta e sobrecarrega Miguel Garay (Manolo Solo), em 'Fechar os Olhos', tal como a Benjamín Esposito (Ricardo Darín), em 'O Segredo dos seus Olhos'; ambos acumularam cabelo e barba brancas, ao longo de mais de 20 anos, sem respostas; Miguel, realizador, não terminou o seu filme, Benjamín, procurador do ministério público, não concluiu a sua investigação; um programa de televisão, para Miguel, e um livro, para Benjamín, são portas para abrir, entrar e remexer, por completo, na memória; o amor vivido e nunca apagado pela distância, de Miguel por Lola, e de Benjamín por Irene (só no final me apercebi que a a atriz Soledad Villamil dá corpo às duas personagens femininas dos dois filmes!), está também presente no trabalho de viagem pela memória; Max (Mario Pardo), amigo de Miguel, e montador do filme, tem algo de Sandoval (Guillermo Francella), procurador também, amigo de Benjamín, ambos sapientes, ambos conselheiros: para Max, é preciso saber envelhecer, sem receio e sem esperança, para Sandoval, todos temos uma paixão na vida e não podemos fugir dela; no fundo, Miguel e Benjamín procuram unir, ou colar, a fita do tempo, o passado e o presente, e fechar as respetivas histórias.
Entramos nos aposentos do castelo de Triste-le-Roy, ocupado agora pelo monsieur Levi (um judeu sefardita que contrata um detetive para trazer-lhe a sua filha que vive na China), sem percebermos ainda que estamos a ver o filme dentro do filme, La Mirada del Adiós [O Olhar de Despedida ou O Úlltimo olhar], que Miguel Garay não terminou devido ao desaparecimento, sem deixar rasto, do ator (que era o detetive Franch na película) e seu grande amigo Julio Arenas (José Coronado); ainda no exterior daquela casa-castelo no bosque, algures nos arredores de Paris, Víctor Erice enquadra, aproxima e fixa uma escultura com dois rostos (unidos) virados para direções opostas: é Jano, antigo deus romano associado ao tempo, às transições, aos começos e fins, com um rosto jovem virado para a frente ( a olhar o futuro), e com o outro rosto envelhecido voltado para trás (a olhar o passado), em simultâneo. Erice volta à mesma escultura do deus Jano no final de 'Fechar os Olhos', para o desfecho daquilo que ali começou: La Mirada del Adiós.
Além do início e do fim, os dois rostos unidos na cabeça de Jano simbolizam o viver de Miguel ao longo de mais de duas décadas, desde a interrupção abrupta do seu filme em plena rodagem até ao momento atual, em que foi descoberto (ele que agora vive longe de tudo, num anonimato nostálgico) e convidado para contar a história do desaparecido Julio Arenas, história que também é sua, à jornalista Marta Soriano (Helena Miguel), no programa de televisão espanhola 'Casos Por Resolver'. Miguel deixou que o rosto do passado, da memória, guiasse o seu futuro, cedendo perante o envelhecimento, isolando-se, vivendo afastado do cinema e da arte de realizar (filmes); e num seguir de viagem passado adentro, Miguel refugiou-se junto ao mar, encarnando, de certo modo, o marinheiro que continua a viver dentro dele e que o aproxima, na memória, do amigo e compincha da marinha, em tempos idos, Julio Arenas; de caravana atracada na praia, como casa improvisada, acompanhado pelo fiel canino, rodeado de barcos, vive ao som permanente do mar e do vento, vive da pesca e de algumas traduções que diz fazer, e, por vezes, à noite, senta-se com os três vizinhos para um pouco de guitarra, fumos e chupitos. Miguel parece ter seguido, ele próprio, a vontade do amigo Julio, que lhe manifestava o anseio frequente de mudar de vida, mas para uma nova vida, uma outra identidade; para os vizinhos da praia, Miguel é Mike (assim lhe chamava um antigo vizinho americano, ali na praia, e ficou); Miguel (Garay) era o realizador, Mike é o homem que vive do mar.
Ainda a olhar para a escultura do deus Jano, podemos também ver nela os rostos de Miguel e Julio fundidos no mesmo corpo, até porque, na verdade, eles nunca se separaram: foram marinheiros juntos, estiveram presos juntos, fizeram cinema juntos, viveram ambos o amor de Lola, e Miguel foi envelhecendo, no rosto que olha o passado, unido ao rosto mais jovem do desaparecido Julio, do insubstituível Julio no filme inacabado, que olha o futuro. Pela estatueta do deus romano, Erice chama-nos à atenção para o poder da arte, que é perene, que perdura no tempo atravessando gerações, espoletando sensações e sentimentos no ser humano. E é pela sua arte, o seu cinema, que Erice, pela mão de Miguel Garay, vai resgatar a sua memória artística, enquanto realizador, um criador de histórias, e espoletar a memória emocional de Gardel (que cantarola e assobia ao ritmo dos tangos do imortal Carlos Gardel), enquanto ser munido de sensibilidade.
Num profícuo 2023,
Víctor Erice segue o caminho da homenagem ao cinema e ao seu poder, tal como fez
Nanni Moretti, em 'O Sol do Futuro' (também escolhido e tratado em DA VAGA DE SALA).
Moretti
confere-lhe o poder de reescrever a História;
Erice
dá-lhe o poder maior de (conseguir) despertar emoções, acima da própria vida terrena. Os enquadramentos a pares daqueles que assistem
La Mirada del Adiós, naquela velha e ressuscitada sala de projeção, num recuperar do passado para olhar o futuro, são magistrais e revelam nos rostos todo esse magnetismo do cinema, em que os olhos reagem: lacrimejam, arregalam ou cerram.
Cerrar los Ojos, de Víctor Erice (2023)
Visionado na Sala do Cinema Ideal
'Fechar os Olhos', de Víctor Erice (2023)