DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
'Ema', de Pablo Larrain: uma deusa do erōs pela liberdade
Em trânsito numa viagem relâmpago de Lisboa para Trás-os-Montes, e vice-versa, há uns dias, pausei no Porto para visitar fugazmente uma querida amiga, que, por aquela altura, se preparava para ir à apresentação de um livro para os lados da Boavista. Convite feito, convite aceite: seguimos para o aconchego da livraria Flâneur ouvir os filósofos, e também professores, José Meirinhos e António de Castro Caeiro (este, o autor) dar pistas sobre as respostas à pergunta que deu nome ao livro 'O QUE É A FILOSOFIA?'. Seduzido pela retórica de ambos decidi regressar a Lisboa com o peso nas mãos de procurar também respostas, pela minha leitura e, claro, por meio de uma reflexão constante. "Ser quem se é depende de uma abertura a si próprios não para cognitivamente percebermos quem somos, mas para existencialmente sermos, vivermos quem somos até às últimas consequências. É erōs [amor, na Grécia Antiga] que mexe connosco e requer de nós a identificação da situação em que nos encontramos"; "...o erōs cria tensão..."; "...o erōs é uma obsessão compulsiva..."; "É o erōs em nós que nos faz viver, querer mais, perseguir o preenchimento". Estas reflexões que encontramos no livro ''O QUE É A FILOSOFIA?', acerca dos discursos em ‘O Banquete’, de Platão, colaram-se a Ema (Mariana di Girolamo), na minha mente, em 'Ema' (2019), de Pablo Larraín; Ema é uma deusa, em carne humana, o seu erōs é a liberdade.
Da filosofia para a mitologia da Grécia Antiga seguimos colados a Ema, desde o início do filme, vendo o seu manuseamento e domínio do fogo, propagando a sua energia e a sua superioridade, uma superioridade humana face às restantes espécies que foi concedida (aos humanos) pelo titã Prometeu, pela atribuição do fogo, depois de roubá-lo aos deuses, ato pelo qual foi duramente castigado pelo deus Zeus (é o mito de Prometeu). O primeiro som que escutamos no filme é do arder, das labaredas, do fogo, ainda em fundo negro, para depois, sim, vermos as chamas, queimando e anulando um semáforo na rua, enquanto os outros permanecem no vermelho, uma barreira e um limite à liberdade, a liberdade que Ema ama, pratica e ensina, como percebemos mais à frente. E é já com os semáforos a transitarem todos para verde, num sinal luminoso de liberdade, que num lento travelling para trás a câmara mostra, naquela rua deserta no escuro da madrugada, Ema, especada, debaixo de fato, capacete e extintor, a remeter-nos para a imagem de um bombeiro impotente, sensação essa que até é prolongada um pouco mais, quando, de seguida, vemo-la entrar nas instalações da assistente social (responsável pela adoção do filho), em que impera o vermelho nas portas, a cor dos bombeiros, a cor do fogo - mas não, da sua mangueira não sai água, ou dióxido de carbono; mas sim combustível, para incendiar em vez de apagar. O vermelho predomina, abunda, numa imagética de cores que alternam artisticamente numa bola gigante que ilumina a performance da companhia de dança de Ema e do marido / coreógrafo, Gastón (Gael García Bernal), remetendo-nos, também pela meticulosa profundidade da música eletrónica de Nicolas Jaar, para uma dimensão quase sobrenatural, divina até; o vermelho da bola reflete na cara de Gastón; o vermelho da carne viva está marcado na cara da irmã de Ema, após queimadura que parece ter sido uma espécie de manuseamento indevido do fogo por Polo, filho de Ema e Gastón.
Num breve salto à astrologia e ao elemento Fogo (um dos 4 elementos a par da Terra, da Água e do Ar), enquanto manifestação de energia, é referida uma grande intensidade emocional; imaginação; muita vontade de viver; paixão por pessoas, situações, possibilidades, oportunidades, aventuras; impaciência; frontalidade e confiança. Em Ema, portadora ambulante do fogo, parecem caber todas essas características, todas elas servindo a sua liberdade. Ema envolve-se emocionalmente pela expressão física, de modo intenso, quer pela dança, ao som do reggaeton (que ela e as amigas sentem como um orgasmo dançante) pelas ruas, parques, ringues, bares da cidade portuária de Valparaíso, no Chile; quer pelo sexo, a dois, ou a mais, com homens ou mulheres; o seu poder de sedução é magnânimo, exala um magnetismo divino, o seu olhar fixa, não pestaneja, penetra, desafia, desmonta convenções e quebra barreiras no seu interlocutor, transmite o seu desejo, o seu erōs, resistir-lhe parece uma impossibilidade; Ema encarna o poder divino pelo fogo destrutivo que propaga, um fogo para si libertador, mas também através da dança, dançando sozinha num topo, acima do mar e da terra (o outro lado da costa iluminado de Valparaíso), que vemos em subtis panorâmicas, olhando de cima para baixo.
A dança que, nas palavras de Ema à diretora da escola, serve para ensinar a liberdade às crianças, é também um meio para expelir toda a energia que ela condensa em si, de modo a não entrar em colapso. Num plano fixo, relativamente demorado, vemos Ema sentada no autocarro, sozinha, de cabeça encostada ao vidro, e o seu corpo a mexer, a vibrar, como que a entrar em ebulição interior - movimento esse que a trepidação por si só não será suficiente para justificar -; também na sua desenfreada incursão aos carrosséis constatamos essa agitação constante, essa necessidade de movimento. É respeitando esse movimento, o movimento de Ema, o movimento dos corpos, o movimento da dança, que Larraín faz deslizar a câmara com suavidade num movimento permanente, mas nunca brusco ou acelerado, seguindo o movimento que a música do também chileno Nicolas Jaar pede - sonoriza grande parte do filme - e que é bem patente na cena de dança e curtes coletiva no feminino. Por outro lado, deixa o movimento da dança do reggaeton para Ema e as outras, não tanto para a câmara. Ainda nos movimentos artísticos da câmara de Larraín, de dizer que as duas panorâmicas que rodam lentamente e desvendam o filho Polo, no interior dos restaurantes com os novos pais adotivos - e Ema a cirandar por fora -, a advogada e o bombeiro (com quem Ema se envolve, à vez), são deliciosas.
O magnetismo divino de Ema acaba por ofuscar o próprio fio da narrativa, bem como todos outros personagens que ora sucumbem, ora vergam, ora cedem perante ela; nem mesmo a força do talento magistral de Gael García Bernal - inesquecível para mim no 'Amor Cão' (2000), de Iñarritu - consegue contrariar. Todavia, Larraín reserva para o final do filme, à semelhança de em 'O Clube' (2015), uma espécie de lógica de somar para unir: se, em 'O Clube', Sandokan junta-se no final aos padres na casa amarela; em 'Ema', o casal Ema-Gastón une-se umbilicalmente e irremediavelmente ao casal Raquel, a advogada (Paola Giannini)-Aníbal, o bombeiro (Santiago Cabrera). Se em 'O Clube' este somar para unir é obra divina executada pelas mãos do padre Garcia, em 'Ema' a obra é de Ema, e também ela é divina.
Ema, de Pablo Larrain (2019)
Visionado em Fimin Portugal

'Ema', de Pablo Larrain (2019)