'Dias Perfeitos', de Wim Wenders: viver todos os momentos, um de cada vez
Ainda entretido por estes dias com a leitura do livro 'O QUE É A FILOSOFIA?', e ainda às voltas e aos enlaces com palavras e ideias proferidas pelo autor António de Castro Caeiro, na apresentação (do livro), sinto-me absolutamente tentado pelo íman do enquadramento, daquilo que vou vendo e vivendo. A ausência enquanto distância entre o desejo formulado e a sua consumação (por exemplo, estes 4 ou 5 dias que nos separam da noite de natal, do desejo/vontade de estar com a família, trocar presentes, viver o entusiasmo dos mais pequenos); a projeção de imagens e memórias de um determinado tempo ou espaço que vivemos e que servem de referência para a nossa mente (por exemplo, aquela ceia natal em que a família era mais numerosa, muito alegre e nos marcou mais), ambas, ausência e projeção, assim ancoradas, ficaram-me na retina. "A anulação da distância, a anulação da ausência, aproxima-nos dos nossos amores, mas não podemos compreender essa distância espacialmente, tal como essa ausência não é apenas temporal ou o caráter invisível, opaco e anónimo. É a amar que renovamos os votos tácitos ou explícitos que fizemos, quando nos ligamos a pessoas, atividades, sítios, a todos os mais diversos conteúdos", lemos em 'O QUE É A FILOSOFIA?' (no capítulo dedicado a Platão).Em 'Dias Perfeitos' (2023), de Wim Wenders, Hirayama (Koji Yakusho), um homem solitário, mas aberto ao viver, entrega-se ao momento, ao instante da vida, ao presente, parecendo condensar num dia só, mas todos os dias, a consumação de muitos desejos/vontades. Hirayama vai anulando a ausência e renovando a projeção pelo seu modus vivendi.
É mesmo no final do final do filme, já após os créditos, que lemos a palavra japonesa komorebi - cujo significado remete para o fenómeno da luz do sol filtrada, a brilhar, pelas folhas das árvores; imagem para qual Wenders nos remete logo no segundo plano do filme (depois de um plano geral sobre Tóquio), vemos as árvores e o céu em contre-plongée [contra-picado, de baixo para cima], a fazer lembrar o plano inaugural, esse bem longo e em movimento, de Evil Does Not Exist (2023), de Ryusuke Hamaguchi - legendada com a frase: "Só existe uma vez a cada momento". O komorebi, fenómeno natural que Hirayama procura captar todos os dias com a sua máquina fotográfica, analógica ainda (a paixão pela fotografia das personagens de Wenders segue viva), no parque/ jardim, enquanto come a bucha que é almoço, ganha valor interpretativo e sentido para o seu viver. O modo como encara o começo do dia: o levantar da cabeça seguido invariavelmente de sorriso, no primeiro olhar para o céu, mesmo quando este lhe devolve o cinzento; o modo como encara o caminho para o trabalho: abre o refrigerante, energiza-se, e escolhe a (velha) cassete com o artista que quer ouvir, de Patti Smith a Rolling Stones, passando por Van Morrison, Lou Reed ou Nina Simone, entre outros vultos, enquanto conduz (com a câmara muitas vezes colada ao rosto) e olha em redor, para os lados, e para cima, a arquitetura está lá sempre, por entre prédios e torres, mas podemos vê-la todos os dias com olhos diferentes; o modo como encara as tarefas do trabalho: entrega-se energicamente e com extrema minúcia à limpeza das casas-de-banho públicas de Tóquio, trabalho que faz com brio, e com um profissionalismo absolutamente irrepreensível; o modo como encara o tempo livre (pós-laboral): relaxa no banho e na hidromassagem de um velho e tradicional spa, diversifica nos restaurantes e cafés que escolhe para jantar, beber, observar, ouvir, conviver ao seu jeito, dá-se aos livros, todas as noites, e à fotografia, claro. Todos estes modos são sintomáticos desse viver de cada momento, em cada vez, da contínua anulação da ausência entre o que deseja e o que faz.
Ao viver constantemente atento, desperto, sensível, ativo perante o que o rodeia - a paisagem natural e a paisagem arquitetónica (urbana), as árvores e as torres (em especial a mais alta de todas, a Skytree, com mais de 600 metros e que à noite se ilumina de cores, e que Wenders nos mostra num plano como estando, sem estar, quase ao lado da casa e do bairro escurecido de Hirayama) - vai renovando permanentemente a projeção (imagem e memória) das coisas e dos lugares. As breves pausas no trabalho, que outrora terão sido acompanhadas de pensativos e abstraídos cigarros, são agora, e sempre, tempo e espaço para olhar em redor, e para cima, incluindo para as sombras nas paredes, onde a natureza proporciona o seu jogo (de luzes e sombras). As pessoas também merecem a atenção e a sensibilidade de Hirayama, ajudando, respeitando e cumprimentando, mesmo que do outro lado venha indiferença (da senhora que come perto dele no parque / jardim) ou preconceito (da mãe que rapidamente limpa a mão da criança com uma toalhita, após esta ter dado a mão a Hirayama); Hirayama continua a saudar com a tradicional vénia, Hirayama não vira costas ou barafusta: há um sorriso para devolver à criança que lhe acena com a mão.
O equilíbrio mental deste homem, que se divide entre o esfregar acerrimamente as sanitas de Tóquio e o fruir de livros e boa música - o intelectual aos olhos da 'mamã', a dona do bar-restaurante por onde ele aparece por vezes -, assenta também numa rotina sistematizada de tarefas, em casa e no trabalho, rígida, que Wenders mostra por ocasiões sucessivas, com laivos, na fase mais prematura do filme, das exaustivas e repetidas rotinas, as tarefas, da célebre Jeanne Dielman, em Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman. Porém, Wenders, quando abre a porta da rua para Hirayama, dá-lhe o complemento, dá-lhe a alternância, dá-lhe a vida, e ele sabe (bem) viver.
Hirayama vive no seu mundo, como o próprio diz à sobrinha: "há muitos mundos no mundo". E, no seu mundo, o analógico ainda não deu lugar ao digital, a música ecoa pelas cassetes, o Spotify é palavra e entidade desconhecida para ele, as fotografias saem do rolo ainda, o telemóvel parece não existir. Este homem que caminha para velho vai-se cruzando com jovens de um outro mundo, menos do que mais definido, e o choque geracional evidencia-se. Na limpeza dos WC, o seu colega Takashi (Tokio Emoto), destrambelhado, vive a quantificar, de 0 a 10, pessoas ou acontecimentos, num mundo em que tudo tem de ser quantificado, medido, avaliado, comparado (um aparte, ainda saíamos da sala de Cinema onde vi o filme e já um senhor perguntava aos seus parceiros de visionamento que nota davam ao filme!? E estava a falar a sério); as diferenças no modo como os dois encaram o trabalho, um trabalho com que não sonharam, é reflexo do fosso geracional: por um lado, o profissionalismo, o rigor e a dedicação de Hirayama, por outro, a leviandade, a ausência de compromisso, o desleixo de Takashi; a amiga deste impressiona-se com a qualidade diferencial do som que sai da cassete e no momento mais engraçado, engraçado de genuíno, não de troça, a jovem procura Hirayama para ouvir novamente na carrinha dele a cassete com a música de Patti Smith, e ali ficam, os dois, fechados, parados, a ouvir.
Nesta viagem pelos dias perfeitos de Hirayama, cujo zen se perdeu apenas pontualmente, num homem que também sabe reivindicar os seus direitos laborais, num homem que também chora, Wenders constrói uma história, uma obra, que, não fosse a música quase toda ela anglo-saxónica, assentaria na perfeição como um filme dos nipónicos Ozu (está lá a câmara baixa dentro de casa e as cenas que parecem iguais, mas que são diferentes, que se repetem ao longo do filme, ou até o comboio que passa) ou Hirokazu Koreeda. Com a sua mestria ímpar, Wim Wenders dá-nos, também, e quão fundamental isso é para a história, uma Tóquio a 360º, vista por cima e por baixo, ao longe e ao perto, por fora e por dentro, diurna e noturna, escura e iluminada. Se não é um filme perfeito, estará lá perto; para o NA VAGA DE ROHMER uma coisa é certa: foi o melhor (filme) que vimos da colheita de 2023.
Perfect Days, Wim Wenders (2023)
Visionado na Sala do Cinema Nimas
Este e outros escritos constam no Livro
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'Dias Perfeitos', de Wim Wenders (2023)