'Friends and Stangers', de James Vaughan: um filme que se estranha e que depois se entranha
No almoço do último Natal um primo trouxe para a mesa o tema das gerações, no seguimento da terminologia utilizada para falar de carregadores e cabos de telemóveis, codificada para uns e descodificada para outros. Recorrendo a um gráfico ilustrado, após rápida pesquisa no google, começamos todos a arrumar-nos nas diferentes gerações catalogadas, mediante as datas de nascimento. Tínhamos ali de tudo naquela sala: de pré-Boomers (os nascidos antes de 1945 não vêm no catálogo) a Alfa, passando pelos Boomers, pelos X, pelos Y (ou Millenials) e pelos Z. Contas feitas, descobrimos que a geração maioritária - tendo em conta a arrumação etária-geracional daquele gráfico, que apresenta ligeiras discrepâncias com outras fontes, mais ano, menos ano - era a X, e divertimo-nos imenso ao perceber que as pessoas da X têm ainda muitas características e particularidades típicas dos Boomers, até porque ambos chegaram à idade adulta ainda na era do analógico. Constatei também, refletindo o possível entre gargalhadas e troca de argumentos, que era entre os Millenials (ou Y), onde ainda me incluo - que ainda cresceram, uns mais anos outros menos, sem acesso à net - que identifiquei mais pontos de encontro, digamos assim, entre gerações mais velhas e gerações mais novas, como se estivéssemos mais no meio, mais ao centro, com um pé no tempo do analógico e um pé no tempo do digital, tentando ligar o passado e o futuro. Uma espécie de limbo, que rapidamente pode resvalar para o vazio, para a indefinição, para ausência de identidade, para a desconexão, tal como observamos em 'Friends and Strangers' (2021) [Amigos e Estranhos], do australiano James Vaughan, um estreante em longas-metragens.
É num filme que se estranha e que depois se vai entranhando, numa história de fragmentos, que vamos acompanhando Ray (Fergus Wilson), essencialmente, um rapaz na casa dos 20 e muitos anos, quiçá a roçar os 30, que parece estar e não estar, seguindo ao sabor do vento, sem rumo definido, atado a uma certa incapacidade, querendo mas não conseguindo, inoperacional, de certa forma. Na primeira das conversas que assistimos entre Ray e Alice (Emma Diaz) - de idades semelhantes e que se conheceram há pouco, mas que não sabemos como - ele diz-lhe que gostaria de trabalhar com as mãos, enquanto observam em plongée [picado, de cima para baixo], no topo de um viaduto, um mecânico que arranja um carro, deitado debaixo dele; Alice responde-lhe que um trabalho de mãos passa confiança. É a confiança em si próprio que falta a Ray, muito, mas também a Alice, de certa forma, e que os faz estar desligados, alheados, como que embutidos naquela paisagem urbana captada de uma Sidney vazia, dormente, letárgica, que vemos nos planos fixos das ruas, das pontes, dos viadutos, do senhor que limpa e lava uma praça ou de um outro que faz jogging, contrariando a quase ausência de movimento; será ainda muito cedo naquele dia, por certo, feriado ou domingo, provavelmente.
É espantosa a harmonia, também visual, que Vaughan consegue criar entre aquele par e aquela paisagem urbana, recorrendo a uma conexão de cores e padrões entre eles (Ray e Alice) e diferentes estilos arquitetónicos patentes nos edifícios: eles não parecem conseguir ligar-se um ao outro com a conversa, que não flui, mas nós vemo-los ambos ligados ao local, à cidade. Numa cena de enquadramentos sublimes vemos Ray, de t-shirt azul a fugir para o cinzento, tal como os arranha-céus envidraçados ao fundo, e vemos Alice, num dos planos de rosto mais belos do cinema recente, de braço esticado, sorriso atrevido, óculos castanhos, com tons mais escuros e mais claros, tal como o cabelo, tal e qual como o edifício de tijolo atrás de si que serve de fundo; depois deste enquadramento, o filme até poderia acabar ali que valeria sempre a pena. Uma estética arrebatadora. De câmara invariavelmente fixa, prolongando planos, deixando a história correr sem pressa de nos contar o que vem a seguir, pelo contrário, aumentando a sensação de nada estar a acontecer, nem vir a acontecer, assim que o filme transita para o parque de campismo, junto ao lago, onde a paisagem natural, de sol, céu, árvores, e água, é agora dona e senhora, Vaughan faz lembrar inevitavelmente o cinema de Hong Sang-soo.
E se em Sidney vemos o contraste entre a arquitetura herdada da colonização britânica e a arquitetura moderna, e vemos foco e zoom em edifícios, bustos e estátuas que nos remetem para a Commonwealth, numa Austrália, tal como os Millenials, com um pé no passado e um pé no futuro, já no campo, no parque de campismo, essa herança colonial permanece também patente: do agora rei Carlos a dar cara às canecas, aos quadros de raquetes de ténis (esse desporto tão britânico) e às imagens de cavalos, um animal importado para a Austrália pelos europeus. Dos objetos para as pessoas, o encontro com o passado vai-se dando por aquele parque, entre os Boomers - o sempre pronto a colocar restrições aos jovens que acampam e preocupado por não saber as horas, e o saudosista (que fala em Fernando Pessoa, mas não ouvimos o fio da conversa) de uma Sidney curiosa, intelectual, artística de outros tempos - e os Millenials - Ray e Alice, entre os complexos, a roçar a paranoia, dele, e a neura crescente dela.
Investindo num exercício de clara imprevisibilidade, Vaughan encaminha o filme para um nonsense crescente, salpicado com momentos cómicos, hilariantes e satíricos. Parece pegar no 'News from Home' (1976), de Chantal Akerman, para o cirandar pela cidade (Sidney) de Ray, dentro do carro, tal como Akerman fez em Nova Iorque, trazendo movimento para a paisagem urbana, ora com travellings para a frente, ora laterais, e agora sim, a cidade ganha outra forma e outra vida aos nossos olhos, mas não por muito tempo. Ao introduzir Miles (David Gannon) na viagem, o amigo de Ray, a câmara estaciona entre os rostos de ambos no carro e a conversa é de caca, literalmente, cheira a fezes dos cavalos que desfilaram no feriado, e depois cheira ao frango frito de Miles, e depois cheira a queimado do motor do carro; a conversa de ambos é fragmentada, é desintegrada, como a própria narrativa do filme. Quando esta dupla inoperacional chega ao bairro de moradias luxuosas, de vistas panorâmicas para a marina, com o intuito de fazerem um vídeo para um casamento, para qual foram contratados, é já com laivos de Quentin Tarantino, mas sem tiros e sem sangue, que rimos, com todo aquele cenário de absoluto absurdo na casa do Boomer David (Greg Zimbulis) e das duas filhas. O ostensivo e inusitado David serve uma cerveja fresca para Ray relaxar, no meio daquela parafernália de estímulos, naquela sala de casa onde a arte é exposta aos magotes, soberbamente desproporcional e despropositada, cobrindo chão e paredes, "fazemos o que quisermos, mas não podemos querer o que quisermos", advoga David, enquanto Ray olha para uma escultura de um rabo empinado; Vaughan serve-nos ali um cocktail explosivo, misturando uma música instrumental estridente, de fundo, permanente, vinda do vizinho, que agudiza o ridículo, o nonsense, e que dificulta a ligação entre o Boomer David - oco, mas convicto em projetos que criem lucro e riqueza - e o Millenial Ray - sem ideias definidas - com um diálogo absolutamente memorável, de soltar gargalhadas durante dias, pontuado com as interferências das filhas.
Em menos de 90 minutos 'Friends and Stangers' dá-nos a sensação de encaixar dois filmes num filme, sempre com o encontro, mas não confronto, de Ray, dos Millenials, de Sidney, da Austrália, com o passado, satirizando-o, sem o menosprezar, evocando-o, sem o seguir, em ambos os filmes, que são um só. Se assim pensarmos, o primeiro (filme, ou capítulo I) é mais existencial, romântico até; o segundo (filme, ou capítulo II) é mais cómico e nonsense.
'Friends and Strangers', de James Vaughan (2021)
Visionado em Mubi Portugal
'Friends and Stangers', de James Vaughan (2021)