'O Pub The Old Oak', de Ken Loach: solidariedade em vez de caridade
Há uns dias estava num café de uma pequena e querida terra alentejana, perdido entre pensamentos e goles de imperial, quando começo a ouvir uma conversa entre o dono do espaço e um senhor brasileiro, novo naquelas paragens, e que estava alojado ali perto, temporariamente, por motivos laborais. Debruçado no balcão, pergunta ao dono do café se existe algum bar onde possa entreter-se durante as noites, tendo em conta que no quarto da pousada onde está alojado nem sequer tem canais de televisão. Como bom alentejano hospitaleiro, o dono do café fala-lhe do bar da terra, com localização e horários, sugerindo-lhe, no entanto, que por agora fique ali a beber uma cervejinha e a ver o futebol (passava um desinteressante jogo de equipas que habitualmente lutam pela manutenção na Primeira Liga). Entretanto, um dos locais, que concilia o agarrar das canadianas com o segurar da garrafa, junta-se à conversa dos dois. No comparativo Portugal - Brasil vem à baila o famigerado tema da segurança, e, nesse campo, o senhor brasileiro enaltece a grande mais-valia para a qualidade de vida que representa o sentimento de segurança vigente por estas bandas (portuguesas). Todavia, o senhor da terra que se juntou à conversa acha que nos dias de hoje já não se está seguro em nenhum lado, nem mesmo naquela pacata terra do Alentejo, até porque, segundo ele, à noite nas ruas só se veem estorninhos. Logo de seguida, percebi que o senhor não estava a falar de pássaros, evidentemente, mas sim dos emigrantes asiáticos (oriundos do Nepal e do Bangladesh) que vivem na terra. Rapidamente o dono do café contesta tal insinuação, defendendo que aquelas pessoas são pacatas e andam na vida delas. Ontem, quando vi 'O Pub The Old Oak' (2023), de Ken Loach, lembrei-me desta conversa.
A crescente xenofobia face a imigrantes e refugiados, tornando-se cada vez mais evidente pela Europa fora, incluindo Portugal, incide muito no receio de potenciais fatores agressores, que, depois, por diversos interesses (políticos, criminosos, identitários) são disseminados pelas redes sociais, essencialmente. É o receio da insegurança, da criminalidade, do terrorismo, da competitividade laboral, da partilha de assistência social, da descaracterização da sociedade aos olhos de racistas e nacionalistas radicalizados. Urge transformar receios em virtudes, até porque a Europa, um continente envelhecido com baixas taxas de natalidade, necessita de rejuvenescimento e de mais população em idade ativa; e se hoje os imigrantes já são essenciais nos trabalhos não qualificados (motoristas e estafetas Uber, trabalho agrícola, restauração, construção civil), amanhã serão fundamentais transversalmente no mundo laboral, e, por conseguinte, na construção de uma sociedade fatalmente mais diversificada. Loach assume o desafio de expor os seus velhos trabalhadores, ou o que resta deles, antigos mineiros ingleses, à convivência com refugiados sírios: um desafio para todos.
É mesmo com más boas vindas que entramos no filme, nós e os refugiados sírios que acabam de chegar àquela pequena localidade a norte de Inglaterra. O ruído dos apupos, da contestação e de insultos dos habitantes locais sonorizam as fotografias, a preto e branco, que vamos vendo no ecrã, dos rostos de quem não quer acolher. As fotografias ganham vida e movimento e aí percebemos que é Yara (Ebla Mari), a jovem síria que domina o Inglês e que assumirá preponderância na integração do grupo, quem dispara os flashes a partir do autocarro. Numa tentativa de apaziguar o tumulto, vemos o empenhado TJ (Dave Turner), ou Mister Ballantyne (assim chamar-lhe-á sempre Yara), dono do último pub que resiste na velha e esquecida terra, The Old Oak, ou The Old Oa, isto tendo em conta que a letra K, periclitante, vai-se soltando do clássico letreiro que vemos à entrada (exterior) e que TJ tenta endireitar, sem grande sucesso. É a decadência, por estes tempos, que toma conta daquele pub, por onde os mesmos de sempre, mas cada vez em menor número, se entregam invariavelmente, e com abundância, às reconfortantes pint (os tradicionais copos de cerveja) que ajudam a afogar mágoas, mas também a afiar línguas contra os perigos que aí vêm: os forasteiros que ameaçam, aos olhos turvos deles, tirar-lhes o pub, roubar-lhes a terra, usurpar-lhes o país. Os vídeos violentos que os mais jovens fazem (com um rapaz sírio) e que disseminam nas redes sociais servem de entretenimento e de alavanca para criar uma narrativa, ainda que atabalhoadamente justificada, do combate aos sírios invasores. Naquele grupo do pub assistimos a um quase unanimismo contra a chegada dos refugiados, uns mais moderados, outros mais radicais, uns mais preocupados com a insuficiência e necessária partilha de recursos numa terra de pobres e desfavorecidos, outros mais odiosos pela ameaça à identidade (nacionalista). TJ sente-se encurralado atrás do balcão: entre os seus valores humanistas, de bondade e de solidariedade, e o resistir de um negócio em declínio crescente, que vai dependendo das pint que tira para os mesmos de sempre.
O gosto de Yara pela fotografia e a sua câmara - transporta-a desde a Síria, um presente do pai que por lá ficou entre prisão e a morte, e que lhe permitiu, através da lente, uma certa abstração do sofrimento e da dor que foi vivendo - aproximam-na de TJ, pois é também pelas fotografias, de um tempo que já não volta, que Yara, tal como nós espectadores, ficamos a conhecer o passado daquela terra e daquelas gentes, mineiros que lutaram em comunidade e em uníssono, com greves, manifestações, e grandes ajuntamentos à mesa, contra o encerramento do(s) seu(s) ganha-pão e essência de vida. Fotografias essas que resistem fixadas numa sala antiga, que se encontra fechada lá atrás, no pub, e no tempo. Uma sala que outrora foi um espaço comum de luta, de comunhão, de entreajuda, de reivindicação de todo um povo, é, neste momento, para os velhos clientes do The Old Oak, o local apropriado para uma assembleia do povo onde se possam reunir forças para uma nova luta, desta feita, uma revanche de destinatário errado, um ajuste de contas odioso. TJ resiste à pressão e só cede a uma outra vontade, a vontade de Yara em criar um espaço comunitário, para locais e sírios comerem à mesma mesa (até porque ambos têm falta de pão), como que ligando passado e presente, escrevendo uma nova história de futuro: solidariedade em vez de caridade, pois o que TJ quer é algo contínuo e de partilha.
E o momento mais belo do filme é mesmo na recuperada sala comum, na projeção de fotografias (tiradas por Yara) , ao som dos acordes de guitarra síria, onde vemos, na tela (de projeção) e na plateia, rostos de britânicos e rostos de sírios, rostos comuns, juntos, de esperança e de orgulho. Mesmo com a resistência veemente dos velhos clientes do pub, da ala dura, e os obstáculos que vão criando à solidariedade entre comunidade local e refugiados, nada demove Ken Loach de levar o filme para esta ideia de um futuro (partilhado) possível, reduzindo ao mínimo os anti-imigração, isolando-os, fazendo deles uma minoria social, mostrando-lhes que a maioria já superou os receios dos fatores agressores.
Se em
'Eu Daniel Blake' (2016)
Loach
faz uma crítica perspicaz, severa e completíssima à desproteção social dos trabalhadores mais velhos e/ou não qualificados, à info-exclusão, e à excessiva burocratização da máquina do Estado; e se em 'Passamos por Cá' (2019)
denuncia a desumanização do trabalhador com consequências na desestruturação familiar; por sua vez, em
'O Pub
The Old Oak', os trabalhadores que vemos já foram vencidos pela nova economia, são antigos mineiros, já não vemos crítica e denúncia do sistema, aqui importa proteger os trabalhadores, ou ex-trabalhadores, da perigosa tendência para a criação de bodes expiatórios relativamente ao rumo dos acontecimentos; protegê-los do fomento do ódio, da desinformação, da radicalização face a imigrantes/refugiados, e deixar-lhes um AVISO (em maiúsculas): essa não é a luta a travar! De forma quase poética, no final, vemos os rostos e os olhares, a par, de TJ e Yara, sentindo o reverberar da solidariedade, e a esperança numa utopia realista que um Sir do alto dos seus 87 anos nos deixa.
The Old Oak, de Ken Loach (2023)
Visionado na Sala do Cinema Nimas
'O Pub The Old Oak', de Ken Loach (2023)