DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 30 de novembro de 2023

'Mais Uma Rodada', de Thomas Vinterberg: o celebrar da vida!


Numa sociedade atual sobrecarregada de informação (que muitas vezes resvala para a desinformação) é fácil conhecer os malefícios de todas as coisas que o nosso corpo ingere ou consome: açúcar, tabaco, álcool, cafeína, os mais variados E's, e muitas outras substâncias, mais ou menos lícitas. O álcool é aquela que mais transversalmente desamarra, liberta, desinibe o indivíduo, também porque continua a ser símbolo maior da celebração: nos brindes de casais, de famílias, em festas, em casamentos (não se brinda com água, continuamos a ouvir); e até nas comemorações das vitórias desportivas, um certo paradoxo (o clássico champanhe nos pódios, do ciclismo à Formula 1, passando pelo Futebol). Regra geral, o consumo de álcool sobrepõe o ser emocional ao ser racional do indivíduo: mais coração, menos razão; mais calor, menos frieza; mais abertura, menos isolamento; mais confiança, menos inibição; mais relaxamento, menos preocupação; mais autenticidade, menos condicionamento; mais naturalidade, menos artificialismo; enfim: mais próximo do primitivismo, menos civilizado; mais humano, menos mecânico. Não raras vezes o seu efeito nas pessoas potencia e estimula sentimentos; relações de toda a índole (amorosas, sexuais, familiares, de amizade); criatividade e expressão no plano artístico (há vários exemplos públicos conhecidos); energia associada à determinação para a execução de trabalhos fisicamente duros (cresci a participar desde criança nas campanhas agrícolas da colheita da azeitona, e o garrafão de vinho tinto ao longo do dia era indispensável para velhos e novos, qual doping no desporto); a alegria e a felicidade para a celebração. É também, mas não só, à volta disto que Thomas Vinterberg nos serve 'Mais Uma Rodada' (2020).


O ruído do gelo e da bebida a escorrer pelo copo, que ouvimos enquanto passam os créditos iniciais - isto após já termos tido a abertura propriamente dita do filme com os jovens ébrios em celebração, mas que deixaremos mais para a frente -, convida-nos para sentar, enquanto nos servem algo, e esperamos pelos nossos quatro boémios à volta de uma mesa; antes disso, tempo ainda para uma incursão pela escola, onde espreitamos as aulas que os moribundos professores vão, arrastadamente, lecionando. Martin (Mads Mikkelsen), professor de História, Nikolaj (Magnus Millang), professor de Filosofia, Tommy (Thomas Bo Larsen), professor de Educação Física, e Peter (Lars Ranthe), professor de Música, amigos e colegas de ensino na mesma escola, reúnem-se para celebrar o aniversário de Nikolay, num restaurante intimista, com iluminação a remeter para o lusco-fusco e onde o empregado de mesa [ou garçon] evoca os campos franceses a servir o champanhe, primeiro, e o czar russo, aquando do servir da vodca, depois. É difícil resistir para Martin, ele que, ao contrário dos outros, prefere não beber antes de conduzir, mas mais difícil se torna para Martin resistir à tentação quando Nikolay saca da suposta teoria de um filósofo e psiquiatra norueguês, Finn Skarderud (de acordo com o próprio, ele apenas escreveu que "após um ou dois copos, sim, a vida é muito boa, pensamos que talvez tenhamos nascido com um défice de 0,5 gr/l", no prefácio de um livro do italiano Edmondo de Amicis, 'Os efeitos psicológicos do vinho' ), de que o ser humano nasce com um défice de 0,5 gr/l de álcool no sangue, dissertando em seguida acerca do potenciar da coragem, confiança, relaxamento e alegria. Para o agora infeliz, inerte e aborrecido Martin não dá para manter mais tempo a boca seca e após lágrimas de libertação junta-se ao celebrar efusivo, com as fisicalidades entre amigos, a fazer lembrar aqui a relação física exuberante entre os irmãos em 'A Festa' (1998); a câmara agora não está tão frenética e tão colada aos corpos, como no filme inaugural de Vinterberg, mas mostra que continua a saber dançar em função dos movimentos das personagens.

Da teoria à prática a distância é de apenas uns goles. Ao testar a ideia de Skarderud, mantendo uma taxa de alcoolémia constante de 0,5 gr/l, Martin cresce na sala de aula. Após a reunião com pais e alunos, deveras preocupados com a inoperância do professor, em que vemos Martin isolado, pequeno, baixo, ao fundo, impotente, pronto a ser devorado por aquela plateia à sua frente e acima de si, eis que o jogo vira e ele assume as rédeas das aulas, numa hiperatividade contagiante que leva os alunos ao rubro. A vitalidade recuperada por Martin estende-se a casa e à tentativa de resgatar a relação desvanecida com a esposa Anika (Maria Bonnevie), fruto em grande parte da presença ausente dele, e da ausência presente dela (trabalha por turnos). Tommy larga o jornal e a imobilidade nas aulas de Educação Física, coloca os pequenos a cantar o hino de mão ao peito, e veste a pele de treinador de futebol, entusiasta e inclusivo; Peter fecha as cortinas e escurece a sala para o canto sentido e afinado do coro na Música; já Nikolay, o grande entusiasta da teoria de Skarderud e, mais ainda, da sua prática, vai monitorizando, redigindo apontamentos da experiência e traçando novas fases, não se coibindo também a testar tudo, juntamente com os restantes.


O álcool como um boost de adrenalina, perdida na juventude, e um trazer de volta da felicidade às rotinas do dia-a-dia, no trabalho e em casa, para indivíduos de meia idade na sociedade contemporânea: estudar os efeitos no desempenho profissional e social, eis a premissa. Às vezes penso que a tendência crescente, dos últimos 20 anos, para o menor consumo de álcool em moderação no dia-a-dia, nos almoços dos dias de trabalho, por exemplo - o aumento do custo de vida também deslocou muita gente trabalhadora de almoços nos restaurantes para as marmitas nas copas - e, ao contrário, presumivelmente, o maior consumo excessivo em determinadas ocasiões (festas, saídas noturnas) talvez tenha vindo a contribuir para o aumento de stress e nervosismo geral que se sente nas pessoas, por exemplo, no trânsito, em que facilmente se tornam primitivas, na pior aceção da palavra, partindo para a violência verbal e física; neste caso, sem necessitarem de uma gota de álcool, presumo também, tendo em conta que estas cenas, chamemos-lhes assim, muitas vezes ocorrem no início da manhã.


Só há excesso quando há consumo e o consumo muitas vezes leva ao excesso. Vinterberg não quis branquear os perigos associados ao consumo e transporta para um dos quatro professores essa carga. A relação indivíduo-álcool dá-se e manifesta-se de formas muito variadas, dependendo de muitos fatores, uns mais explicáveis do que outros, e a história não muito contada daquela personagem, com o trágico desfecho, encaixa bem, sem moralismos, sem ilações, sem conclusões.



No final de tudo, e no fim do filme, 'Mais Uma Rodada' serve o pensamento de Søren Kierkegaard (outro filósofo, este bem mais impactante do que o ilustre desconhecido até então, Finn Skarderud), que lemos na abertura: "O que é a juventude? Um sonho. O que é o amor? O conteúdo do sonho". Ao som de What a life, de Scarlet Pleasure, que tão bem assenta, iniciamos como acabamos, a celebrar em êxtase a vida, tendo o álcool como parceiro. E a celebração não é eternizarmos a juventude? As melhores celebrações são as da juventude e, depois disso, resta-nos ir tentando replicar algo parecido, nem que seja de quando em vez, com danças, mais ou menos ortodoxas, mais ou menos esfuziantes, com o amor, o amor à vida!


Druk, de Thomas Vinterberg (2020)

Visionado em Filmin Portugal

'Mais Uma Rodada', de Thomas Vinterberg (2020)

Compartilhar

'3 Rostos'
Por Stéphane Pires 20 de fevereiro de 2025
'3 Rostos', de Jafar Panahi: três mulheres, três tempos, três sombras
'A Semente do Figo Sagrado
Por Stéphane Pires 17 de fevereiro de 2025
'A Semente do Figo Sagrado', de Mohammad Rasoulof: fé, submissão e obediência absoluta
'Nada a Perder'
Por Stéphane Pires 6 de fevereiro de 2025
'Nada a Perder', de Delphine Deloget: um corpo de emoções como arma
Mais Posts
Share by: