Um casal de banqueiros suíços acaba de chegar a um hotel em Buenos Aires e a conversa com o rececionista anda à volta dos festejos prolongados no tempo, após a conquista do Mundial de Futebol pela Argentina, e, também, em torno da situação política atual, da necessidade de grandes reformas que estão a ser levadas a cabo, porque, de acordo com o senhor hospitaleiro, a situação era catastrófica. Estamos em 1980: a Argentina tinha sido campeã do mundo em 1978 pelos golos de Mario Kempes e pela estratégia do técnico César Luis Menotti, num certame em que foi o país organizador; dois anos antes, em 1976, a mesma Argentina viveu um golpe de Estado que fez cair a Presidente da República, Isabel Perón, e que instaurou uma ditadura militar fascista, liderada por Jorge Videla, que duraria até 1983 (a última, até ver, ditadura argentina). Este é o retrato do contexto histórico-social que serve de pano de fundo para 'Azor - Nem Uma Palavra' (2021), primeira longa-metragem do realizador suíço Andreas Fontana. Todavia, é inevitável o transporte do nosso imaginário para os dia de hoje, ora vejamos: a Argentina continua a ser a campeã do mundo em título, após ter ganho o Mundial do Qatar há menos de um ano, desta feita pelos golos de Messi e pela estratégia do técnico Scaloni, ambos Lionel; a situação política é deveras preocupante após a eleição, há uns dias, do novo Presidente da República, Javier Milei, alguém que se autodeclara de anarcocapitalista, e que destila extremismo, divisionismo, populismo, ao estilo de Trump ou Bolsonaro, ameaçando de motosserra em punho, literalmente, a democracia e o Estado de Direito; por fim, Genebra, dos suíços, continua a ser a grande banca privada dos milionários.
Yvan De Wiel (Fabrizio Rongione), herdeiro e neto do fundador do banco privado suíço que representa, aterra em Buenos Aires, pela primeira vez, para uma tarefa bastante complexa: substituir o sócio René Keys, que se encontra desaparecido e que geria todas as relações do banco com os clientes (milionários) argentinos. Numa época marcada pela captura e desaparecimento de milhares de pessoas na Argentina ditatorial de Videla, destino idêntico para o banqueiro René Keys é bastante plausível, mas fica sempre na ordem do imaginário. Keys é figura ausente ao longo de todo o filme, exceção feita, quiçá, porque não fiquei com a certeza, à abertura do filme, em que vemos um homem de olhos azuis, ora sério, ora sorridente, enigmático, com um fundo de imagens da selva e a música a adensar o mistério e o imaginário. O título do filme dá-nos uma ajuda, Azor, em português açor, é uma ave de rapina (esteve na origem do nome para o arquipélago dos Açores) que vagueia por florestas densas, caça escondido e é raro avistá-lo, privilegiando a camuflagem e lugares mais reservados; caça aves, como perdizes, pombas e corvos, mas também lebres, esquilos, ratos ou répteis. O açor perfila metaforicamente o grande banqueiro suíço, e é, simultaneamente, o desaparecido Keys e o presente De Wiel; Keys foi um açor pela forma como conseguiu caçar todos aqueles diferentes magnatas; De Wiel é o açor que a sua perspicaz esposa, Inès (Stéphanie Cléau), evoca, como padrão comportamental: "Fica calado, tem atenção ao que dizes". Ao receoso, inseguro, ansioso, e inexperiente nestas lides sul-americanas, De Wiel, bastar-lhe-á anuir, ora ficando calado, ora pouco falando, para dar seguimento ao legado do excêntrico, arrojado, popular Keys; para tal conta também com a imprescindível Inès, que observa, analisa e identifica traços característicos e de personalidade dos clientes, em prol do marido; é caso para dizer que atrás de um grande homem (que De Wiel procura ser na alta finança) há sempre uma grande mulher; mais um provérbio para juntar aos que Inès vai dizendo no filme.
Nas visitas que De Wiel e Inès fazem aos clientes encontramos diferentes personalidades, com as suas idiossincrasias, mas todas partilham admiração, fruto de uma relação de profunda confiança, pelo antecessor Keys. Aqui fica bem demonstrada a importância de um gestor de fortunas e como ele consegue ser preponderante no plano material, claro, mas também no emocional. A única cliente mulher que vemos - numa classe alta dominada por homens e onde a presença de Inès é por vezes questionada ou, sorrateiramente, barrada -, já envelhecida, recorda saudosamente as viagens que fazia com Keys, as canções que ambos cantarolavam e o emblemático gin Gordon's que bebiam em celebração à chegada aos destinos. As conversas que assistimos entre os banqueiros e os clientes são, na maioria das vezes, curtas e superficiais, importa mais o retrato daquelas pessoas e do seu habitat do que o conteúdo de conversas sobre finança, investimentos.
Li numa entrevista que Andreas Fontana escolheu atores não profissionais para fazerem de clientes e foi recrutá-los entre advogados, alta finança, grandes proprietários e herdeiros de grandes fortunas. Foi uma aposta ganha, pela naturalidade, naïf até, de certo modo, especialmente no olhar da Senhora Lacrosteguy, e na sua expressão corporal, de braços estendidos na piscina, excessivamente denunciados para De Wiel, permitindo-nos imaginar algo que ela tenha vivido amorosamente com o antecessor e que gostasse de reviver, agora com o atual gestor da fortuna. Lacrosteguy vive assustada com eventuais perseguições; Augusto e a mulher estão tristes e enlutados com o desaparecimento da filha; Farrell com o seu advogado, ambos grotescos e deselegantes, apostam nas corridas de cavalo e numa carreira política com a mesma voracidade; e o monsenhor Tatoski mostra a Igreja como pilar da finança e da política, uma figura tremendamente sinistra que, ao mesmo tempo, transmite afabilidade e apreço por De Wiel: um homem de duas caras, que vemos bem refletidas no vidro do elevador.
É por entre whiskeys e gins (ainda que o contido De Wiel prefira quase sempre água) nos interiores das casas decoradas a preceito onde a câmara exibe, à vez, os serviços de prata, as estatuetas, os bustos, os livros, ou nos aperaltados jardins com piscina, ou em quintas de horizonte sem fim à vista, ou nas míticas corridas de cavalos, ou em clubes privados, do tipo maçonaria, que as relações se vão dando. A música, por vezes tétrica, no escuro da noite, vai adensando o suspense, o mistério, o sinistro, deixando-nos constantemente em alerta para um perigo que espreita, e assim prossegue até ao seu final, nunca nos permitindo pôr de parte uma consumação de algo trágico: é um grande mérito do filme. A música, as figuras sinistras, incluindo, claro, o monsenhor (ou o padre), as conversas em surdina, o segredar ao ouvido, aquela gala (que pomposamente abre com 'Coimbra', de Raúl Ferrão, em notas de saxofone e piano) com aquele flash de luzes e dança, a certa altura, trouxeram-me à memória 'Il Divo - A Vida Espetacular de Giulio Andreotti' (2008), de Paolo Sorrentino. E mesmo nas cenas finais do filme, sempre com música, as semelhanças prosseguem: De Wiel no barco rumo a Lázaro, Andreotti no avião rumo a Palermo. Ambos jogam a sua sorte, o seu futuro, o seu desfecho: o banqueiro ataca, o político defende-se. No final, o(s) último(s) plano(s) é(são) do(s) rosto(s) dele(s); no final, quem ri por último ri melhor.
Apesar de estarmos na Argentina de 1980, 'Azor - Nem Uma Palavra' não é, nem pretende ser, um filme circunscrito àquela época, e por vontade da narrativa (que Andreas Fontana, neto de um banqueiro, nos conta) e por força da História contemporânea (cristalizada, no que toca à alta finança; às grandes fortunas, e de certo modo até à política e ao futebol, pelo menos na Argentina) une dois tempos num (tempo) só. 'Azor - Nem Uma Palavra' assenta no binómio retrato - imaginário. Dá-nos três grandes retratos: o retrato dos banqueiros suíços, o retrato dos grandes detentores de fortuna argentinos (a classe alta) e o retrato da relação entre ambos; a nós, espectadores, cabe-nos imaginar, muito, para assim criarmos a (nossa) narrativa, com o molde que nos é concedido.
Azor, Andreas Fontana (2021)
Visionado em Filmin Portugal
'Azor - Nem uma palavra', de Andreas Fontana (2021)