DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 23 de novembro de 2023

'A Comuna', de Thomas Vinterberg: a força da fraqueza num rosto


Num tempo claramente marcado pela escassez de habitação e pela impossibilidade de escolha, muitas vezes, seja do tipo de casa, seja da localização ou seja das pessoas com quem se vive no mesmo espaço, a ideia de, na vida adulta e já com família constituída, partilhar casa com outros (vários) em espírito de comuna poderia até ser solução, mas parece cada vez mais anacrónico. O mais perto que estive de viver algo similar, ainda que salvaguardando enormes diferenças, foi nos meus tempos de universitário em Braga; além das pessoas (fixas) com quem partilhava casa - com a maioria delas desenvolvi uma ideia de vida comunitária: de convivência, de partilha, de camaradagem, de amizade -, outros havia que por lá passavam e iam ficando, ora conversando, ora festejando, ora debatendo, ora pernoitando. Este partilhar de casa grupal, aberto, relacional, cooperativo foi pautado por uma enorme felicidade, e estou certo que perdurará nas boas memórias de todos aqueles que vivemos juntos, com intensidade, aqueles tempos. Porém, o partilhar casa nem sempre tem índices de felicidade tão elevados assim e, frequentemente, a tristeza e a solidão imperam, especialmente quando esse viver partilhado deixou de ser uma escolha e está desfasado temporalmente na fita da vida daquela pessoa. A defesa da liberdade individual, a preservação do direito à privacidade, o egoísmo e individualismo crescentes, bem como a tendência para o isolamento e as novas comunidades, as digitais, feriram de morte a utopia do viver em comunas, como aquela que Thomas Vinterberg retrata em 'A Comuna' (2016), em Copenhaga, na década de 70.


Se me perguntassem hoje, que sou pai e marido, se viveria numa comuna, não hesitaria em responder que não. Porém, não fecho a porta a essa possibilidade num futuro enquanto idoso. Acredito que quanto mais velhos ficamos mais mal nos faz a solidão, a monotonia, a rotina, a previsibilidade. Há uns anos vi o filme 'E se vivêssemos todos juntos?' (2011) - do francês Stéphane Robelin, com as ilustres Jane Fonda e Geraldin Chaplin, entre outros -, que juntava cinco amigos idosos a viver na mesma casa, numa decisão que tomaram após a ida de um deles para um lar. Um rejuvenescimento na velhice e a entreajuda de quem está no mesmo barco, digamos assim, são as notas dominantes do filme. Mas será uma ideia que pode vigorar? É que aqueles idosos do hoje foram os jovens do Maio de 68 e talvez, no fundo, estejam a recuperar uma ideia utópica de um tempo que viveram. É desafiante, e penso que vale a pena enquanto mais velhos pensarmos nisto.

Thomas Vinterberg passou pela experiência de viver numa comuna, com a mãe, durante a adolescência e a juventude, sendo essa vivência pessoal o suporte para a história que nos conta em 'A Comuna'. E, por aquilo que o realizador foi dizendo acerca da marca dessa experiência na sua vida, é bastante provável que a personagem Freja (Martha Wallstrom), filha do casal protagonista, Erik (Ulrich Thomsen) e Anna (Trine Dyrholm), seja uma emanação do próprio Vinterberg, pela transformação a que assistimos no seu crescimento, na sua autonomia, na sua segurança e na sua felicidade ao longo do filme. No entanto, não deixa de ser curioso que Vinterberg nos tenha dado menos daquilo que é o pensar e o viver em comunidade com todas as suas idiossincrasias, e se focasse mais na relação do casal Erik e Anna, sob o olhar atento e presente de Freja, e na sua consequente degradação com o surgimento de Emma (Helene Reingaard), aluna de Erik e por quem ele vai trocar a esposa Anna. Seria bom que Vinterberg tivesse feito aquilo que chamei de warm-up em 'A Festa' (1998), onde nos deu um pouco sobre as características e os padrões comportamentais das personagens nos quartos da casa-hotel, antes do início da festa propriamente dita; ou seja, gostava de ter conhecido melhor o casal, e até um pouco dos restantes cinco adultos antes de entrarem na comuna: umas pitadas de pensamentos, histórias de vida e características dariam outro sal à coisa, até para perceber melhor o quão a vida de, e na, comuna influenciou o descarrilar da relação de Erik e Anna, bem como o seu (de Anna) terrível e impressionante desmoronar.


É verdade que vemos reuniões domésticas à volta da mesa, distintamente enquadradas entre cigarros e garrafas, de vinho e cervejas (muitas), com recurso à votação de braço no ar em modo assembleia do povo, para tomar decisões comuns, dirigidas sempre por Ole (Lars Ranthe), o mais convicto e entusiasta da causa, que sempre que pode queima as coisas que apanha fora do sítio, rumo à desmaterialização, e que se passeia pela casa nu, apenas coberto por um roupão aberto. Mas quando as decisões a tomar são difíceis e verdadeiramente importantes (além das contas de cerveja), como votar pela admissão de Emma na comuna, esta (a comuna) falha e começa a ruir porque Erik era e ainda se considera (e burocraticamente é) o dono da casa de 450 m2 que herdou do pai e que, perante a votação maioritariamente contrária à entrada de Emma, destila o seu autoritarismo e ameaça com o fim da comuna, caso a sua vontade, individual, não vá avante. A ideia de criar a comuna sempre foi de Anna e não de Erik, que lá aceitou com algum custo; no fim, a criação parece voltar-se contra a criadora, apesar de Emma surgir do mundo de Erik (é sua aluna de arquitetura) e não da comuna, para onde acaba depois por entrar.


O pensar que a comuna possa estar na origem do fim da relação do casal - pelo fosso que foi abrindo entre ambos, e as imagens no início do viver em grupo mostram-nos a dificuldade de Erik em conversar com Anna à mesa de jantar perante tantos diálogos cruzados, bem como a despedida fria e esquecida de ambos no amanhecer seguinte - parece uma conclusão com alguma debilidade; por outro lado, a convivência a três (Erik, Emma e Anna) em grupo, no dia-a-dia, contribui decisivamente para o apagão total de Anna, que de início aparece radiante, luminosa, com uma aura de felicidade a transbordar pelo azul dos olhos e o dourado dos cabelos, mas que, progressivamente, vai definhando, e nem a iluminação do estúdio de televisão (é jornalista pivô) ou a maquilhagem conseguem reparar.

É nela, em Anna, que Vinterberg mais repousa e mais aproxima a câmara, até só vermos olhos e boca; o seu rosto transborda todas as emoções contidas e a força da fraqueza avaria o canal de televisão da Dinamarca; e se é muito de emoções e memórias que vive, e que vivemos, o cinema, como não lembrar do rosto mais expressivo em toda a história cinematográfica, a partir de um grande plano: o de Liv Ullman, em vários filmes de Bergman. A sintonia entre a câmara de Vinterberg e o rosto de Trine Dyrholm é a força maior do filme, mais do que a comuna.


Kollektivet, Thomas Vinterberg (2016)

Visionado em Filmin Portugal

'A Comuna', de Thomas Vinterberg (2016)

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