DA VAGA DE SALA - Especial LEFFEST

Stéphane Pires • 21 de novembro de 2023

Evil Does Not Exist, de Ryûsuke Hamaguchi: o poder da natureza


No final da exibição/estreia de Evil Does Not Exist (2023) [‘O Mal Não Está Aqui’], este domingo, dia de encerramento do LEFFEST, no Tivoli, Ryûsuke Hamaguchi foi questionado a propósito de semelhanças com [Michelangelo] Antonioni e [Jean] Renoir, na conversa pós-filme. Eu lembrei-me de Chantal Akerman e daquele plano de abertura do seu derradeiro filme No Home Movie (2015), precisamente enquanto via o plano inaugural de Evil Does Not Exist. Com uma duração semelhante, de cerca de quatro minutos (ainda que o plano de abertura do filme de Hamaguchi seja 'interrompido' por duas vezes para vermos os créditos iniciais), ambos mostram, pacientemente, o existir da natureza, mas com perspetivas contrastantes. Akerman estaciona a câmara junto a um arbusto (uma réstia de vegetação) que se sacode ao sabor do vento num árido deserto; Hamaguchi move a câmara, que anda para a frente e nos coloca a olhar para cima, para as folhas e os paus das árvores: a primeira camada do céu. Akerman dá-nos uma natureza a esgotar-se, sem vitalidade, que apenas resiste; Hamaguchi dá-nos uma natureza vital, que nos guia, que emana poder. Evil Does Not Exist é sobre o poder da natureza: das árvores, da água, do céu, e também dos animais.


E nesta ideia de fazer paralelismos, comparações e reflexões é impossível não trazer à liça Drive My Car (2021), a sua obra-prima, até porque também é o seu filme anterior. Drive My Car é sobre o poder das pessoas, o poder que o outro tem para nos fazer seguir em frente, para nos colocar num processo de transformação interior necessário; são as pessoas que ditam os eventos e o rumo daquela história, onde a palavra abunda e determina, até pelo constante escutar das falas da peça teatral, ora nos ensaios e nos espetáculos, ora gravadas em cassetes e ouvidas no icónico carro vermelho. Por sua vez, em Evil Does Not Exist o poder é da natureza, e esta não fala, mas emite sons, pelo que aqui o primado não poderia ser da palavra, e o teatro de Tchekhov, que é pano de fundo em Drive My Car, é 'trocado' integralmente pela música da compositora Eiko Ishibashi - pelos vistos foi a principal responsável pelo surgimento do filme ao convidar Hamaguchi para filmar aquelas paisagens para o seu novo álbum -, de quem já tínhamos ouvido trechos no próprio Drive My Car, nas pausas da palavra. A melodia de Ishibashi conecta-nos com a natureza, que nos entra pelos olhos com a mesma nitidez, beleza, sentido e significado que vimos a paisagem urbana em Drive My Car, e transporta-nos para um estado de meditação: é em modo zen que deixamos o filme ir entrando lentamente, e com paciência, dentro de nós. Drive My Car faz-nos ir; Evil Does Not Exist faz-nos ficar.


Takumi (Hitoshi Omika) e a filha Hana (Ryo Nishikawa) vivem numa pequena comunidade embutida nas montanhas. Takumi ocupa os dias entre o corte preciso da lenha que as árvores dão, imprescindível para fazer face ao frio de neve, e o coar e engarrafar de água dos riachos, imprescindível, também, para a cozinha do restaurante / estalagem que ali aconchega os estômagos com os seus ramens, que por vezes são enriquecidos com wasabi silvestre que Takumi vai encontrando; Hana é uma filha da natureza e deambula por entre pinheiros e carvalhos, ora às cavalitas do pai, ora sozinha, por entre a flora e a fauna; vemo-la a avistar um veado solitário, ambos ficam imóveis, prenúncio do clímax no final. A primeira parte do filme, digamos assim, concentra-se em mostrar-nos a harmonia da natureza, com as árvores, a água, o céu, e o viver de Takumi e Hana com ela (natureza). Só depois de estarmos bem harmonizados com a natureza é que somos confrontados com o projeto de glamping que uma empresa tem para aquela região e que tenderá para a desarmonia.

A partir da sessão de apresentação do projeto à comunidade, com perguntas e respostas, emergem as pessoas e a palavra; por um lado vemos Takumi e outros locais a defenderem e a protegerem o seu habitat, por outro lado temos os dois representantes da empresa a tentarem seduzir a plateia pela palavra, ainda que enganadora e leiga, acerca da bondade e da mais-valia do projeto. Pela preservação e não contaminação da água pelas curtas fossas sépticas, pelo não queimar das árvores nos possíveis incêndios, pelo perigo dos veados selvagens para os turistas/visitantes, a natureza exalta todo o seu poder e todo o seu esplendor. Cabe aos dois agentes da empresa entrar em harmonia com a natureza para dar sustentabilidade ao (projeto do) glamping; uma mulher e um homem impreparados para tal missiva, parecem ter caído ali de paraquedas; na conversa de ambos no carro, a caminho da comunidade, vão partilhando as respetivas solidões, que nem as apps de encontros parecem solucionar. Com estas duas personagens Hamaguchi parece procurar aqui uma tentativa de transformação pessoal, de encontro de rumo, à semelhança de Drive My Car, mas a tentativa saiu gorada: falta-lhes profundidade e verosimilhança. 


A intromissão dos dois agentes na solidão de Takumi, que permanece no seu metódico, preciso e repetitivo corte da lenha (a fazer lembrar Kafuku no modo como constantemente repetia as falas da peça no carro em Drive My Car), parece não mexer com ele. E quando um dos agentes quer experimentar o cortar da lenha, Takumi, após os falhanços do principiante voluntarioso, não lhe fala de uso de força, mas apenas de posicionamento e foco: do pé e do olhar. É uma metáfora perfeita daquilo que aos olhos de Takumi falta aos empreendedores do projeto do glamping. A força está na natureza, o poder é dela, e as pessoas não devem investir na força contra ela. A caminho de um clímax que Hamaguchi deixou para o final, vamos vendo a natureza a impor-se ao glamping, aos dois agentes, um de cada vez, com menor e maior violência, e, por fim, também aos próprios Takumi e Hana. O filme acaba no caminho que começou, por baixo das árvores; agora o dia virou noite.


Evil Does Not Exist, de Ryusuke Hamaguchi (2023)

Visionado na Sala do Teatro Tivoli, Festival LEFFEST

'Evil Does Not Exist', de Ryusuke Hamaguchi (2023) -LEFFEST

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