DA VAGA DE SALA - Especial LEFFEST

Stéphane Pires • 19 de novembro de 2023

'O Sangue', de Pedro Costa: uma ode à arte de fazer cinema


O filme de estreia de um realizador desperta-me sempre particular interesse e curiosidade, essencialmente para perceber o que está a começar ali (num jovem realizador) ou como tudo começou (num realizador de carreira em estado avançado ou já em consagração). Num realizador iniciante, após a sua estreia, ficamos na expectativa de perceber o que, e como, se seguirá, se haverá mais continuidade ou mais rutura, ou até um misto de ambas; por sua vez, num realizador experimentado já conseguimos fazer esse exercício de analisar e refletir sobre o peso que a primeira obra tem na filmografia que vem depois, se a marca identitária é mais rígida ou mais flexível perante a passagem do tempo, a mutação da vida e das coisas. Talvez a arte de fazer cinema se assemelhe muito à arte de viver: estará tudo relacionado com o risco, com a experiência, com o conhecimento, com o acaso, com a sorte, com a possibilidade ou a impossibilidade. Para Pedro Costa, 'O Sangue' (1989), exibido este sábado no LEFFEST, "é uma espécie de prefácio, um filme muito protegido pelo cinema".


Pedro Costa fez d' O Sangue' uma ode à arte de fazer cinema, o primor da estética, algures entre um realismo poético de Renoir - uma sublime fotografia, em especial nas cenas no bosque e à beira-rio, com o clímax naquele plano da aurora (pós-noite no cemitério) em que a luz do céu reflete na água do rio, remeteram-me algumas vezes para as paisagens em 'A Semente do Ódio' (Renoir, 1945) - e o Noir, onde as luzes jogam com as sombras, e os rostos ora são iluminados ora são escurecidos, onde a música eletriza o suspense; como não pensar em Orson Welles, inclusive na última cena de Vicente (Pedro Hestnes) e Clara (Inês de Medeiros), o agarrar dele a ela e a música, com laivos do agarrar de Welles e Rita Hayworth em 'A Dama de Xangai' (Welles, 1947). Clara não é uma femme fatale, nem 'O Sangue' é um clássico Noir, apesar de todo o escuro nas longas noites, da morte, da perseguição (dos cobradores de dívidas); Clara é mais uma fada, onírica, singela, de vestido branco a iluminar no escuro, protetora dos irmãos Vicente e Nino (Nuno Ferreira).


Mas, ainda na ideia da ode à arte de fazer cinema, consegui também ver uma pitada de Charlie Chaplin num plongée [plano picado] que, revestido pela música certa, nos dá uma cena acelerada e inusitada em que são retiradas caixas do armazém para uma carrinha e esta arranca, trapalhona, trepando as escadas. E é também em plongée que Pedro Costa nos mostra e enquadra os irmãos deitados lado a lado, mas em sentidos opostos, e com o sol a iluminar apenas Vicente, o sol de que Nino não gosta e por isso fica muitas vezes constipado, segundo o pai; já em contre-plongée [plano contra-picado] vemos pela primeira vez o rosto de Clara, sentada numa das mesas da sala de aulas da escola onde trabalha. É uma panóplia recheada de variedade de planos e ângulos, onde os travellings são preciosos para acompanharmos os passos e o rosto de Vicente no escuro da noite enquanto persegue o pai (Canto e Castro) fugidio - vai e vem, aparece e desaparece rotineiramente -, ou quando, também no escuro, Vicente busca por remédios na farmácia, outra vez por causa do pai, que padece de doença prolongada.

 

Além da música (introduzida) que vai alternando entre o revestimento do realismo poético e do Noir, Pedro Costa não se coíbe de alternar música com ruídos que emanam da rua, criando até uma certa adrenalina com as sirenes das ambulâncias e o rebentar dos foguetes na noite de fim de ano, enquanto o pequeno Nino faz a contagem até 100, à espera que o irmão o resgate da casa do tio (Luis Miguel Cintra), que o raptou da casa onde vivia com Vicente após a morte do pai de ambos.


O sangue que aparece na mão de Vicente na farmácia é o sangue da relação de pai(s) e filho(s). É do meu sangue, é do nosso sangue. Muitas vezes ouvi estas tiradas no meu Trás-os-Montes quando a conversa se reportava a pais e filhos, mas também a tios e sobrinhos ou ainda a primos carnais (assim se denominam por lá os primos direitos) ou primos até ao 5.º grau (até à 5.ª geração é do mesmo sangue, cresci eu a ouvir). Por mais que o pai esteja ausente e largue os filhos ao abandono, Vicente com 17 anos e Nino com 10, o sangue fala mais forte e ambos lhe prestam veneração e vassalagem, mesmo quando o pai é brusco e bruto, mesmo quando está ausente estando presente, privilegiando o sentar nas escadas da casa para a rua, como estando a preparar-se para nova e misteriosa partida. A fidelidade consanguínea faz com que Vicente e Nino guardem segredos do pai e o protejam. Pela mesma fidelidade consanguínea o tio arranca de Vicente o sobrinho Nino para viver com ele e com o filho (primo de Nino), quer dar-lhe um futuro após a morte do irmão, o pai de Nino, como que um compromisso de sangue, ainda que tenha de verter o seu próprio sangue após uma pancada (do sobrinho Vicente) e o rasgar de orelha.


O prólogo de quase quatro minutos antes dos créditos iniciais (Pedro Costa não lhe chamou prólogo) poderiam muito bem ser uma curta-metragem de 'O Sangue', está lá tudo. Do esbofetear do pai a Vicente, debaixo daquele céu cinzento algures em nenhures, à iluminação do farol do motociclo de Vicente, passando pelo caminhar de vai ou vem que não desaparece nem se aproxima na imagem (aparentemente o pai) e o(s) sonho(s); sonhos e realidade misturam-se.


'O Sangue', de Pedro Costa (1989)

Visionado no Festival LEFFEST, Sala do Cinema Nimas

'O Sangue', de Pedro Costa (1989) - LEFFEST

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