'Uzak - Longínquo', de Nuri Bilge Ceylan: duas realidades em contraste
Perante tamanha e boa oferta de estreias (em Portugal) e de filmes recentíssimos neste 17.º LEFFEST, eis que a minha primeira escolha recaiu num filme com mais de 20 anos, o ‘Uzak – Longínquo’ (2002), de Nuri Bilge Ceylan. Foi uma escolha muito fácil porque o (bom) cinema é intemporal, porque se trata de Ceylan, porque era um filme que ainda não conhecia, porque era oportunidade para o deleite que é ver o seu cinema contemplativo-paisagístico em Sala, ainda para mais depois de ter visto 'Era uma vez na Anatólia' (2011), 'Sono de Inverno' (2014), e 'A Pereira Brava' (2018) fora dela (da Sala). Existencialista primoroso através das imagens, Ceylan faz de Istambul neste Uzak o que faz da Anatólia nos outros três filmes que mencionei: a paisagem urbana (Istambul) transforma-se num quadro perfeito de contemplação e reflexão para os intérpretes da sua história, e para nós também claro, à semelhança da paisagem montanhosa e rural (Anatólia). Cabe aos silêncios e aos ruídos do quotidiano alicerçar as imagens, muito mais do que aos diálogos.
Ceylan corporiza em dois homens, dois primos, um contraste de realidades temporais, sociais, familiares, intelectuais, unindo-os apenas no permanente desejo sexual que ambos evidenciam pelas mulheres, surgindo como que uma condição inata que é transversal às diferentes realidades; inclusive, há um momento no filme em que os dois surgem em locais diferentes a ver o mesmo canal de televisão: Fashion Models, numa total convergência. O jovem Yusuf (Mehmet Emin Toprak) ruma a Istambul vindo de uma Turquia profunda, de vales e montanhas, de casas dispersas, onde a neve e o sol coabitam ao mesmo tempo e onde galos e cães ecoam as manhãs; vem à boleia, em busca de trabalho nos cruzeiros, quer ser marinheiro e acredita que aí ganhará o suficiente para ajudar a família; entretanto fica em casa do primo, mais velho, Mahmut (Muzaffer Özdemir), um fotógrafo, divorciado e solitário.
Yusuf vem para a metrópole em busca de um futuro, como fez em tempos Mahmut, mas esse futuro dos sonhos, de uma vida melhor, parece já ser passado, porque a crise económica que assola a Turquia agora sente-se no campo e na cidade, e para o primo mais velho resta a inevitabilidade do presente, o status quo. Mahmut virou cosmopolita naquela Istambul ocidental, só fuma Marlboro, ouve jazz nos bares (sempre em solitário), anda de smart, tem um escritório-biblioteca; enquanto Yusuf fuma o tabaco reles dos marinheiros, envolve-se em conversas e gargalhadas nos bares onde eles param no porto, e vagueia em busca de um trabalho que parece cada vez mais longínquo. Mahmut desprendeu-se das ligações familiares, não procura a família, pelo contrário, é procurado por ela; por sua vez, Yusuf tem como missão ajudar e salvar a família, apoia e encoraja sempre que pode pelo telefone. Mahmut discute ideais de fotografia com colegas, entretém-se a ver filmes de Tarkovsky; ao passo que Yusuf adormece a vê-los (Stalker, de Tarkovsky, 1979) e espevita com o zapping pelos canais da televisão turca.
Se é verdade que existe sintonia entre ambos no que toca ao voraz apetite sexual - ainda que não partilhem entre eles, escondendo até, resguardando essa intimidade - ainda assim manifesta-se de formas diferentes. Mahmut tem encontros sexuais frequentes com uma mulher, em casa - que vemos logo na primeira cena do filme com ele, em que nos aparece desfocada enquanto se despe - e vai espreitando pornografia em VHS, sempre que o primo não está por perto, seguindo a perda de envolvimento emocional após o divórcio, privilegiando um lado quase mecânico. Quanto a Yusuf, nos grandes planos do seu rosto, conseguimos ver a tristeza e a vontade simultâneas por não estar, e querer estar, a dar a mão às mulheres dos casais que observa, a brincar com a neve, nos parques cobertos pelo manto branco em Istambul; apesar de não esconder o desejo no olhar para as pernas de uma mulher no elétrico, é uma namorada para casar que ele procura e persegue, mesmo que lhe faltem competências sociais para o consumar de presumíveis competências emocionais, como vemos nos encontros, quer de acaso quer causados por ele, com diferentes mulheres.
A preservação do sossego, da intimidade e da solidão é deveras essencial para Mahmut, ele que está em vias de ver a ex-mulher partir definitivamente para o estrangeiro. A goteira e os ratos na cozinha já são perturbações de sobra para o circunspecto Mahmut e até o tilintar provocado pelo primo no espanta-espíritos, enquanto fuma, parece já ser insuportável, e mais insuportável fica ainda quando Yusuf, na sua puerilidade e simplicidade, larga pela casa um brinquedo em forma de soldado de guerra a dar tiros, num momento cómico que se transforma em altamente transgressor aos olhos e ouvidos de Mahmut. Yusuf é um intruso, tal como o rato apanhado na cola que faz de ratoeira, e a solidariedade deste com o animal em apuros é a solidariedade que ele queria sentir da parte do primo por ele, que também está em apuros; ao mandar Yusuf fechar o rato num saco plástico e deitá-lo ainda vivo ao lixo e aos gatos que rodeiam é como se Mahmut estivesse a mandar Yusuf fechar também o seu saco (de viagem) definitivamente e levá-lo para longe.
No final Ceylan convida-nos a sentar ao lado de Mahmut, sem deixar de olhar para o rosto dele que vai sendo ampliado, fumar um pensativo cigarro à beira-rio, a ver os cruzeiros que chegam e que partem; tempo para refletirmos sobre o existir, sobre o sentido da vida, sobre o que nos dão e o que nos levam as pessoas quando partem do nosso dia-a-dia, sobre o que fomos, sobre o que somos e sobre o que queremos ser.
Uzak, de Nuri Bilge Ceylan (2002)
Visionado no Festival LEFFEST, Sala do Cinema Nimas
'Uzak - Longínquo', de Nuri Bilge Ceylan (2002)