As festas de aniversário na Idade Média tinham como objetivo proteger o aniversariante do mal, pois acreditava-se que os espíritos maus atacavam por essas alturas, e, como tal, era importante rodeá-lo de amigos e familiares que conferissem a proteção necessária. Foi também imbuído num certo espírito medieval, com recurso até a um voto de castidade, que Thomas Vinterberg, juntamente com Lars von Trier, proclamaram um manifesto que apelidaram de Dogma 95, também para afastar espíritos maus que progressivamente se foram apoderando do cinema e que punham em causa o autor e as suas ideias. Tal como o aniversariante na Idade Média, o autor precisava de ser protegido, para bem do cinema, e, não havendo proteção de outros, nada mais lhe restava do que impor as suas próprias regras éticas, estéticas, técnicas, jurando um voto de castidade de 10 mandamentos. 'A Festa' (1998) foi a primeira obra do Dogma 95 e o seu autor, Thomas Vinterberg, é a escolha DA VAGA REALIZADOR DO MÊS para Novembro.
Respeitando uma temporalidade sem alienações, de tempo ou de geografia, um dos mandamentos do Dogma 95, toda 'A Festa' se desenrola praticamente na casa-hotel do patriarca Helge (Henning Moritzen) que reuniu família e amigos para o seu 60.º aniversário. As raras exceções a esse espaço dão-se apenas nos caminhos iniciais dos três filhos rumo à festa, e logo aí percebemos que a câmara vai acompanhar e associar-se intrinsecamente aos movimentos; após uns breves segundos na abertura a mostrar-nos fixamente (o quão fixa pode ser a imagem com a câmara segurada à mão) uma longa reta de colinas - que nos remete para a obliquidade da vida e por conseguinte das imagens que veremos dela dali em diante, com altos e baixos, sobe e desce, tensão na linearidade - e Chris (Ulrich Thomsen), um dos filhos, a caminhar ao longe, muito longe, a câmara salta para a nuca, para o rosto e para as mãos do corpo andante; de seguida envolve-se (a câmara) na fisicalidade efusiva dos cumprimentos dos irmãos Chris e Michael (Thomas Bo Larsen) e dá-nos a vertigem, sem artifícios (leia-se, efeitos especiais), da viagem em contrarrelógio do carro onde vem a irmã Helene (Paprika Steen).
Antes de começar a festa propriamente dita Vinterberg serve-nos uma espécie de aperitivo, como que um warm-up, para o banquete; fecha os três irmãos nos respetivos quartos da casa-hotel e mostra-nos a essência comportamental de cada um deles: Chris reflexivo e letárgico, agarrado a uma cadeira enquanto a antiga (e atual) pretendente, funcionária do hotel, rebola na cama numa tentativa gorada de atiçar o fogo; Michael descompensado, alterado, em ebulição permanente digladia-se com a esposa freneticamente até ao sexo intenso que apazigua as coisas; Helene hesitante, dividida entre a verdade dos factos e a consequência dos mesmos. A câmara move-se ao sabor da personalidade e do comportamento de cada um dos três irmãos, entre o estacionar com Chris, o movimento descontrolado de frenesim com Michael e o ziguezaguear do 'quente e frio' com Helene; em comum, em todos os quartos, a câmara por vezes prefere ser vigilante e sobe ao teto para nos mostrar em plongée [picado] a ação: como se estivesse ali fixa. Já Helge, ainda neste warm-up, é-nos apresentado no escuro (o prenúncio), onde recebe Chris para uma conversa; a mãe Else (Birthe Neumann) anda por perto, sempre, de Helge. E o espírito mau que atormenta os aniversariantes, como na Idade Média? É o espírito da filha falecida, de Helge e Else, que recentemente se suicidou na banheira de um dos quartos da casa-hotel. O espírito dela, que será mau para o aniversariante Helge, como na Idade Média, irá encarnar em Chris, primeiro, em Helene, depois, e em Michael, por fim.
Sentados à mesa, que comece a festa, que venham os brindes e os discursos! E serão cinco brindes - que começam no tilintar do talher no copo, que prosseguem com discurso e que terminam em silêncio sepulcral - a atravessar a tarde, a noite, a madrugada e, finalmente, a manhã. Cinco brindes que são como cinco rounds ou cinco camadas de uma catarse que chega cedo à festa, mas que, ainda assim, não consegue vergá-la: a festa é para seguir até ao fim, assim quer o anfitrião Helge, o embriagado cozinheiro Kim (Bjarne Henriksen), o mestre-de-cerimónias e, apesar de tudo, os três filhos. Chris abre as hostilidades no 1.º round-brinde-discurso, denunciando o pai; a mãe Else riposta no 2.º round-brinde-discurso, protegendo o marido Helge; Chris contra-ataca num 3.º round-brinde-discurso, a tentar sobreviver a esta noite; Helene lê a carta da irmã falecida num 4.º round-brinde-discurso. A frieza de Helge, mais gelada do que o gelo que quer quebrar, mandando servir bebidas no final de cada round-brinde-discurso é cortante; a música e a dança, ao som do piano, são paliativos para o mal, e a festa resiste, arrasta-se num plano cada vez mais inclinado, desfocado, de vistas turvas, onde o naufrágio já está anunciado. O aniversariante Helge cai por terra (porque o naufrágio é só figurativo) e fecha o 5.º round-brinde-discurso num ato de contrição já na manhã do dia seguinte.
É muito, e essencialmente, sobre o controlo e o descontrolo do indivíduo, perante situações trágicas, de pressão social, que incide 'A Festa'
de
Thomas Vinterberg, temática que terá espaço e tempo noutras histórias da sua filmografia.
Festen, de Thomas Vinterberg (1998)
Visionado em Mubi Portugal
'A Festa', de Thomas Vinterberg (1998)