DA VAGA DE SALA

Stéphane Pires • 5 de novembro de 2023

'Golpe de Sorte', de Woody Allen:  que não chega a ser de génio


A estreia de um novo filme de Woody Allen é sempre um evento imperdível, mesmo que isso implique voltar contranatura a uma Sala num centro comercial, suportando o ruído dos trituradores de pipocas: assim foi para ver os últimos Rifkin's Festival (2020) e 'Um dia de Chuva em Nova Iorque' (2019), lembro-me. Desta feita foi um 'Golpe de Sorte' (2023) poder ver o seu 50.º filme numa Sala habitual. Não há realizador algum, vivo ou morto, de quem tenha visto tantos filmes como de Woody Allen, até hoje, e eles, o criador e as suas obras, foram os primeiros grandes responsáveis pela minha afeição ao cinema. Estar-lhe-ei eternamente grato por Annie Hall (1977), Manhattan (1979) e Match Point (2005), filmes para a minha eternidade (passe a redundância), e estendo ainda a minha vasta gratidão por Bananas (1971), Interiors (1978), 'Maridos e Mulheres' (1992), 'O Misterioso Assassínio em Manhattan' (1993), 'As Faces de Harry' (1997), Vicky Cristina Barcelona (2008), 'Meia-noite em Paris' (2011), ou 'Homem Irracional' (2015). O pouco que li e ouvi antes de ver este 'Golpe de Sorte' - visto como o melhor depois de Match Point e apresentando semelhanças com a obra londrina - serviu para um elevar de expectativas de que manifestamente não precisava, porque iria sempre vê-lo, e que me levou a um olhar para trás, que não tive necessidade de fazer nos recentes Rifkin's Festival e ‘Um dia de Chuva em Nova Iorque', e a um constatar nostálgico daquilo que (praticamente) se esfumou: a intelectualidade e a pseudo, as reflexões e interpretações filosóficas, o humor refinado e a comicidade física naturalmente desajeitada, as sustentadas crises existenciais, as neuroses.


Acredito que a associação feita com Match Point verse essencialmente na narrativa e na ideia central do filme, que, aliás, é uma convicção forte de Allen e que ele propaga aos sete ventos dentro e fora dos ecrãs: a sorte, e o papel preponderante que ela desempenha nas nossas vidas, a começar na dele, segundo o próprio. Ao recordar Match Point e o intervir da sorte no rumo da história, pensamos também, e talvez em primeiro, em toda uma imagética cirúrgica partindo de um contexto: estamos em Londres, cidade do Wimbledon, o mítico torneio do Grand Slam de ténis, a personagem central é professor de ténis e antigo praticante profissional, a família protagonista, de classe alta londrina, é amante da modalidade, no ténis a rede a meio divide o court e muitas vezes interfere caprichosamente na bola que ora cai para um lado, ora cai para o outro, levando à consumação do match point, por um lado, ou à salvação do mesmo, pelo outro; e a cena crucial de Chris (Jonathan Meyers) a lançar o anel para o rio, que por capricho bate na grade, que se assemelha à rede, e altera o rumo da sorte é o culminar de toda a genialidade de Allen e desse filme. Por sua vez, em 'Golpe de Sorte' Allen decide entregar a premissa da crença na sorte e o seu absoluto contrário aos dois homens que criam o triângulo: Alain (Niels Schneider), o amante, advoga a força da sorte, enquanto Jean Fournier (Melvil Poupaud), o marido, advoga a sua fraqueza (da sorte); Alain acredita que pouca coisa se controla na vida, enquanto Jean acredita que a sorte se provoca e que por si só não existe; Alain é escritor, Jean é gestor de fortunas. No meio deles, a ligar as diferentes sortes, que por sinal no fim não serão assim tão diferentes, está Fanny (Louu de Laâge).


Contrariamente a Match Point tudo se desenrola muito rápido em 'Golpe de Sorte', a começar logo pela primeira cena do filme, que é o reencontro, por acaso, nas ruas de Paris, de Alain e Fanny, antigos colegas de liceu, com a câmara a rodar a entre eles e a envolvê-los. Falta maturação, os diálogos, outrora exaustivos nas histórias de Allen, agora são substituídos (em demasia, uma tendência crescente nos seus últimos filmes) pela música, o jazz, sempre o jazz, mas já não o de Billie Holiday ou o de Ella Fitzgerald, esse ficou em Nova Iorque. As tiradas existencialistas, soltas e vagas, que saem da boca de Alain, e que necessitam de ser complementadas pela compra 'forçada' de uma lotaria, sofrem da ausência de aprofundamento, de reflexão, de divagação, até de uma certa verborreia, afinal está ali um escritor que diz acreditar profundamente na força da sorte, no acaso, que ama Paris e, afinal, não é o alter-ego de Woody? Não é, talvez não era para ser. E ela? Fanny Fournier, como agora se apresenta após o casamento, trabalha numa leiloeira de arte (o cenário artístico sempre presente na filmografia de Allen; em Match Point eram museus e galerias de arte), transmite uma certa vulnerabilidade e ansiedade que ela própria apregoa, mas faltam-lhe neuroses, falta-lhe drama. E faísca entre eles? Sensaborona, em todas as dimensões. Quando pensamos em Chris e Nola (a fogosa Scarlett Johansson) de Match Point sentimos a faísca física, mas também nos lembramos, claro, da faísca intelectual e cómica de Woody e Keaton nas suas obras-primas, e mesmo até mais recentemente numa certa faísca intelectual entre Joaquin Phoenix e Emma Stone, nas respetivas personagens, em 'Homem Irracional'.


Cabe a Melvil Poupaud, no papel de Jean Fournier, o compensar dessa ausência de densidade e maturação das figuras de Alain e Fanny. Rico, magnânimo, e até grotesco, assim o vemos na ostentação em que se move e que galvaniza, desde a sumptuosa casa em Paris, de pé alto, paredes brancas, trabalhadas, onde saboreia ruidosamente os conhaques, até aos restaurantes luxuosos que diariamente frequenta, onde os bons vinhos e o foie gras pontificam, complementando-se nos fins-de-semana na casa de campo (la campagne),como típico burguês de França (já Rohmer nos mostrava essas rotinas de escape da grande Paris), forçando a sorte na caça ao veado; mas também controlador, maníaco e sinistro, agarrado aos comandos do mini-comboio de uma maquete que comanda efusivamente em casa: metáfora do controlo que exerce na sua vida, incluindo na da esposa Fanny.


A Paris que vemos em 'Golpe de Sorte' é semelhante à que vimos em 'Meia-noite em Paris', aquela que Allen venera, a Paris de passeios pelos parques, num registo outonal em que as folhas caídas fazem passadeira aos amantes, a Paris das brasseries que vêm ainda da Belle Époque, a Paris dos vinhos a escorrer pelos copos. Todavia a intelectualidade parece ter desaparecido para dar lugar à exuberância nesta classe alta que se entretém em festas, cocktails, jantares, entre mexericos, inseguranças e cornichons.


O golpe de azar que é desferido a Alain, primeiro, e a Jean, depois, corrobora a crença inabalável de Woody Allen de que na vida a sorte faz o seu papel e que este é deveras importante, mas que também existe uma parte que controlamos; assim é nos seus filmes, na sua vida, e, acrescento eu, em todas as vidas, em doses diferentes, claro, de sorte (ou azar) e de controlo. Alain foi contrariado pelo controlo da sorte, exercido por outros, Jean foi contrariado pela força da sorte, pelo ricochete, mesmo com probabilidades diminutas. E no fim este é o grande golpe do mestre Woody, um golpe de sorte que não chega a ser de génio como foram tantos outros, por entre os seus 50 filmes.


Coup de Chance, de Woody Allen (2023)

Visionado na Sala do Cinema Nimas

'Golpe de Sorte', de Woody Allen (2023)

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