DA VAGA DE CASA

Stéphane Pires • 3 de novembro de 2023

Aloners, de Hong Sung-eun: alienação temporária ou infinita?


Dessocialização e desumanização progressivas do indivíduo são apanágio das sociedades contemporâneas, processos acelerados pelo desenvolvimento tecnológico e a consequente digitalização da(s) vida(s), mais agudizados ainda nas grandes cidades, nas metrópoles. Por mais que haja uma tendência crescente de transversalidade global nestes fenómenos de alienação, de isolamento, do anular de emoções, de perda de competências sociais, de ausência de relações humanas, o resistir a essa fatalidade é mais evidente nos aglomerados reduzidos, nas terras mais pequenas. O viver em comunidade das aldeias, das vilas, das pequenas cidades, quase que obriga a uma socialização constante e, simultaneamente, combate a alienação, pela força que move contra o isolamento social: seja por meio da presença de vizinhos, que são sempre caras que conhecemos, ou de familiares, seja pelas atividades culturais e de recreio levadas a cabo pelo associativismo local, seja pelo convívio inevitável nos pequenos clubes, cafés ou restaurantes, seja pelo culto religioso na Igreja, seja numa simples caminhada na rua. O anonimato que podemos viver nas grandes cidades (que Rohmer tanto aborda e enfatiza nas histórias dos seus filmes em Paris) contrasta com o compromisso social que vivemos nas terras mais pequenas. A sul-coreana Hong Sun-eun, na sua obra de estreia, Aloners (2021) [não encontrei o título do filme traduzido para português; se a tradução for literal será 'Sozinhos' ou 'Solitários], propõe-nos um olhar - que permite pensar em vários temas e isso é um grande mérito do filme - para esta realidade que nos assola e que tanto nos diz ou irá dizer, mesmo que seja do outro lado do mundo, em Seul.


Ao ver a jovem Jina (Gong Seung-yeon) em Aloners, na sua vida de rotinas solitárias e no seu trabalho de automatização e mecanização, lembrei-me de Christian (Franz Rogowski) no filme do germânico Thomas Stuber, 'Nos Corredores' (2018), que vi há uns meses. Ambos vivem sozinhos, ambos são silenciosos, ambos estão em sofrimento após o trágico, ambos aparentam ser desprovidos de emoções (até um certo ponto), ambos vivem alienados, ambos não têm relações sociais ou familiares e fogem delas (Jina foge do pai, após a perda da mãe; Christian foge dos problemáticos amigos, após a prisão), ambos vão de autocarro para o trabalho, ambos fazem as pausas com os sentidos e imprescindíveis cigarros, ambos estão presos a uma rotina mecânica e automática de trabalho: ela atende clientes num call center de cartões de crédito, ele empilha produtos num hipermercado; ambos têm no trabalho o prolongamento e o consumar das suas (des)socializações: vivem a solidão das vidas também nos trabalhos, mas os outros (os seus pares) serão sempre uma via a abrir-se para a socialização.


É de olhos pregados aos ecrãs e/ou de ouvidos tapados que vemos invariavelmente Jina: no trabalho olha para o computador e ouve os clientes de headsets na cabeça; fora dele, olha para o telemóvel, sempre de phones nos ouvidos, seja na rua, seja a comer os invariáveis ramens ao almoço, seja no autocarro, seja no corredor do prédio, onde finge, ou prefere, ignorar o vizinho, compulsivo fumador. E também em casa - melhor, no quarto, que de início nos é mostrado num plano picado, de cima para baixo, para melhor identificarmos o seu habitat - os olhos mantêm-se colados ao ecrã, alternando entre séries, na grande televisão, e a casa do pai, no portátil, por onde o vai vigiando através de uma webcam que deixou na sala dele (qual big brother...), sem ele saber, claro. Jina vive num total aprisionamento e controlo; no trabalho aprendeu a conter as emoções para a resolução necessária das questões e dos problemas dos clientes - foi a melhor assistente do mês no call center, mesmo faltando dois dias devido à morte da mãe -, parece estar como peixe dentro de água nas chamadas com os clientes, é assertiva, disponível, paciente, e simpática o quanto baste, num registo perfeito para a concretização dos objetivos e dos resultados, resultados esses que no geral têm de ser melhorados, assim pressiona a supervisora, que ameaça com o fantasma da inteligência artificial a chegar e a retirar aquele(s) posto(s) de trabalho, nada que pareça incomodar Jina; a sua expressão facial, que vemos sempre de frente e de muito perto, nunca muda, independentemente do cliente que está do outro lado da linha, por mais insana que seja a conversa (e de quanta insanidade podem ser as conversas dos clientes, sei bem pela experiência que já tive a trabalhar em call center).

A solidão a que se remete em todo o seu quotidiano é o seu refúgio, a sua segurança, a sua abstração, a sua alienação, a sua independência, e essa solidão real estende-se ao virtual: não a vemos a interagir em redes sociais com absolutamente ninguém, a sua utilização compulsiva dos dispositivos não se prende com construção de relações, com conversações, ou com partilhas; apenas lhe interessa a (sua) alienação e o controlo do pai, o contacto que para ela agora é possível ter com ele. E, quando a supervisora lhe pede para que seja ela a formar uma nova trabalhadora, Jina sofre, sente o perigo do desmoronar da sua muralha da solidão. A novata Soo-jin (Jung Da-Eun) ao falhar o seu papel no perfil de assistente pretendido para o atendimento, mesmo com a ajuda de Jina, ganhará paradoxalmente o papel de assistente emocional de Jina, ainda que não de forma direta, pela sua vontade de socializar e humanizar, desbloqueando-lhe o controlo e, assim, devolvendo-lhe a vermelhidão nas pálpebras, as lágrimas que não chorou no funeral da mãe, os gritos e a raiva contida, e o vaguear noturno (disperso), sem telemóvel e sem phones, por Seul.


É apenas nesse vagueio notívago, muito curto, que o filme abre a cidade de Seul, ao fim de mais de uma hora, de um total de 90 minutos. Teria sido muito bom termos mais cidade em Aloners, mais pessoas sozinhas nas multidões, mais rostos perdidos, mais arquitetura, e, este momento do filme permitia isso, até como libertação, depois de andarmos todo o tempo com Jina entre o quarto, o call center, o postigo do ramen ao almoço, o interior do autocarro, o corredor do prédio; e permitia também, aquele momento, uma música que saísse do (só) instrumental, pensei em algo dos Radiohead ali, naquele caminhar desnorteado. Temporalmente Jina está marcada pela morte recente da mãe e está a fazer o luto, o seu luto, a sua despedida, ou a tentar, e aquele cinzeiro que transitou do vizinho que morreu para o novo vizinho assemelha-se a um pote de cinzas, e continua na varanda do prédio por onde ela passa todos os dias. Também me lembrei de After Life, com Ricky Gervais no papel do viúvo Tony nessa série britânica: o fazer o luto no conforto da solidão. Por falar em solidão, ao ler uma entrevista da realizadora, Hong Sun-eun, fiquei surpreendido quando ela explicou que deu o nome ao filme no plural Aloners, porque além da personagem central pensou nos outros aloners do filme: o pai, a supervisora, a novata, o vizinho. E é verdade: o pai passou a viver sozinho, a supervisora estava sozinha na sua cruzada de busca de metas, a novata estava sozinha na sua expressão de emoções naquela função, o vizinho fumador foi um solitário em casa até à morte.


Aloners, de Hong Sun-eun (2021)

Visionado em Mubi Portugal


'Aloners', de Hong Sung-eun (2021)


Compartilhar

'3 Rostos'
Por Stéphane Pires 20 de fevereiro de 2025
'3 Rostos', de Jafar Panahi: três mulheres, três tempos, três sombras
'A Semente do Figo Sagrado
Por Stéphane Pires 17 de fevereiro de 2025
'A Semente do Figo Sagrado', de Mohammad Rasoulof: fé, submissão e obediência absoluta
'Nada a Perder'
Por Stéphane Pires 6 de fevereiro de 2025
'Nada a Perder', de Delphine Deloget: um corpo de emoções como arma
Mais Posts
Share by: