DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 31 de outubro de 2023

'O Amor às 3 da Tarde', de Éric Rohmer: da imaginação à realidade


Fechamos Outubro e despedimo-nos de Éric Rohmer em DA VAGA REALIZADOR DO MÊS; em Novembro entrará em cena outro mestre para esta VAGA. Depois de 'Noites de Lua Cheia' (1984), do 2.º Capítulo - Comédias e Provérbios, e após o 'Conto de Outono' (1998), do 4.º Capítulo - Os Contos das Quatro Estações, encerramos com um dos seis Contos Morais, do 1.º Capítulo, precisamente o derradeiro deles: 'O Amor às 3 da Tarde' (1972). Tal como em 'A Minha Noite em Casa de Maud'(1969) com o grande Jean-Louis Trintignant, Rohmer centraliza na figura masculina todos os dilemas morais que vão afetando pensamentos e ações nos relacionamentos com as mulheres e na conceptualização de padrões, girando em torno de amor e desejo, realidade e imaginação, possibilidade e impossibilidade. E tal como em 'Noites de Lua Cheia', Rohmer declara toda a sua adoração à vida fervilhante das grandes cidades, com as suas multidões e o seu anonimato, em contraponto com a angústia e a opressão dos subúrbios (la banlieu) e da província; Paris é uma porta aberta para a rua, para a imaginação, para o inesperado; la banlieu é a porta fechada de casa, para a realidade, para o esperado.


Ao contrário do personagem de Trintignant em 'A Minha Noite em Casa de Maud', ainda solteiro no início da história, Frédéric (Bernard Verley) já está casado e já é pai, quando nos aparece pela primeira vez no prólogo, assim lhe chamou Rohmer, que dividiu o filme em três partes, com três separadores: prólogo, primeira e segunda parte. Frédéric narra-nos os seus pensamentos nas viagens diárias de comboio entre a sua casa, nos subúrbios, e o seu escritório de advogados (onde é um dos dois associados), em Paris. Os seus pensamentos começam nas páginas dos livros que vai lendo no comboio e prosseguem nos olhares que vai lançando sobre as mulheres que partilham a viagem: a imaginação substitui a realidade, que fica retida em casa, até ao regresso, ao final da tarde/noite; pelo meio há um trabalho, no escritório, mas mesmo que a realidade volte, ao som do tocar sucessivo dos telefones e do bater das máquinas que escrevem, ela, a realidade, sofre pinceladas interruptivas para dar lugar à imaginação, seja pelas pinturas que vemos afixadas nas paredes, seja pelas duas belas mulheres, as secretárias, e Frédéric admite ter tido em conta o duplo critério beleza-juventude quando, juntamente como o sócio, fez o recrutamento; essencialmente para estarem 'bem' rodeados.


As viagens de comboio, as multidões na rua assim chegados a Paris, por onde vemos Frédéric a serpentear, e os grandes cafés - para onde ele gosta de ir comer uma sanduíche, já depois da hora de almoço, sossegado, ao contrário das suas secretárias - permitem-lhe as suas evasões imaginárias. Nos cafés Frédéric observa as pessoas, os casais, as mulheres, e nós vemos todo o rebuliço de rua parisiense pelos grandes vidros e ouvimos o som em simultâneo do interior (conversas, talheres e pratos) e do exterior (carros a passar), que delícia! Toda a realidade está a ali a acontecer, é como se não houvesse câmara alguma a filmar. Neste jogo de contrastes entre realidade e imaginação, Rohmer ousa e cria o seu momento surrealista - à Buñuel, lembrei-me particularmente de 'Viridiana' (1967) e 'Este objeto obscuro do desejo' (1977) -, hipnótico, cortando todo o som ambiente, da rua, deixando apenas as vozes do fantasioso Frédéric (e das mulheres) com o seu colar de corrente magnética, como que um polícia sinaleiro a mandar parar...não os carros, mas sim as mulheres, várias, colecionando seduções efemeramente consentidas (aqui Rohmer usa atrizes que trabalharam com ele noutros filmes).


Para corporizar a fantasia e imaginação de Frédéric, voltando ao realismo após aquele breve truque de magia, é-nos introduzida na história Chloé (Zouzou), uma antiga namorada de um amigo, que após alguns anos fora está de volta a Paris. Chloé passa a ser a companhia de Frédéric nas tardes, na hora de almoço tardia, ora nos cafés, ora nas compras, ora nas ruas. Todas as mulheres que o protagonista ia observando desde casa até ao escritório, passando pelos cafés e pelas boutiques, parecem agora estar concentradas na desconcertante, atraente, instintiva, imprevisível Chloé, que tanto se torna visita frequente no seu escritório, esparramando-se no sofá, como vai desaparecendo. Nas suas conversas no escritório vemo-los muitas vezes refletidos no grande espelho, vemo-los em duplicado, mas, com o evoluir da história, um outro espelho confronta-os de frente e Frédéric questiona Chloé se ela acredita em duas vidas perfeitas e completas, a realidade e a imaginação continuam o seu jogo, pelo menos para ele, e para Rohmer claro; por fim, um último espelho mostra a Frédéric que a imaginação não pode tornar-se a realidade.



L'Amour l'après-midi, Éric Rohmer (1972)

Visionado em Filmin Portugal

'O Amor às 3 da Tarde', de Éric Rohmer (1972)

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