'Viva Varda!', de Pierre-Henri Gibert: desafios para a eternidade
Que melhor despedida o NA VAGA DE ROHMER poderia ter neste 21.º Doclisboa do que um 'Viva Varda!' (2023), de Pierre-Henri Gilbert, uma viagem pela vida e pela obra de Agnès (Varda), figura incontornável da Nouvelle Vague e do cinema: foi esta tarde na Culturgest, no derradeiro dia do Festival. Começou por desafiar-se a ela própria, para depois desafiar o cinema e as gentes que o envolvem, e consequentemente desafiar-nos a todos nós, público; foi uma vida de desafio e de desafios que Agnès Varda sempre quis viver, desde o momento em que abandonou os estudos por não querer submeter-se aos exames que via como humilhação e, sim, entregar-se à sua vocação, a fotografia, fazendo depois a transição da fotografia para o cinema, pela limitação que esta (a fotografia) impunha, ensaiando uma reinvenção do cinema, ainda antes da Nouvelle Vague, com o seu La Pointe Courte (1955), atingindo o auge pouco tempo depois com Cléo de 5 à 7 (1962), declinando, pelo meio, o 'emprestar' dos seus escritos à Cahiers du Cinéma de Truffaut e dos outros, ora financiando e produzindo os seus próprios filmes, ora conseguindo financiamento pela sua arte de sedução ou sedução artística, recorrendo a um coração-batata ou a uma batata-coração quando foi necessário. Viveu e filmou, filmou e viveu até ao fim, despedindo-se dos filmes e da vida no mesmo ano, em 2019, no derradeiro Varda par Agnès.
Brusca, temperamental, pouco doce, autoritária, sedutora arrogante, frágil, original, de espírito livre, anti-snobe, controladora (também de emoções) foram as características que fui retendo, ao longo de todo o documentário, proferidas pela própria Varda e pelos diferentes testemunhos de familiares, amigos, gentes do cinema. Revolucionária, ativista e feminista, também, claro, mas chamou-me particularmente a atenção o afeto e a fidelidade de sempre, de uma vida inteira, de 1951 até 2019, com a sua Rua Daguerre, onde manteve sempre a sua casa (mesmo quando viveu nos EUA), que também foi o seu laboratório de fotografia, primeiro, e a produtora que criou, depois. Daguerréotypes (1975) é a sua declaração de afeto e fidelidade àquele lugar, ao seu lugar, e é notável como ela obtém e mostra os rostos disponíveis dos seus vizinhos comerciantes, com as suas mãos ativas e hábeis nas atividades rotineiras, recolhendo testemunhos identitários e revestindo tudo isto com uma aura de magia ao relacionar as palavras do ilusionista com as imagens do que se vive na padaria, na barbearia, no talho, na mercearia ou na perfumaria. Daguerréotypes é o meu filme predileto de Agnès, até agora, e este 'Viva Varda!' dá-lhe um destaque especial, partilhando o protagonismo com o inolvidável Cléo de 5 a 7, e o emocional, e quase autobiográfico, Documenteur (1980) - que ainda não vi -, feito após a separação de Varda e Jacques Demy.
Recriou-se e transformou-se de início ao fim Varda, sobrevivendo ao término da Nouvelle Vague, sobrevivendo ao triunfo do cinema comercial de Hollywood, sobrevivendo à morte do amado Jacques Demy (seropositivo), que acompanhou até ao fim entretendo-o com um filme que realizou sobre a sua infância (de Demy), sobrevivendo ao desinteresse das produtoras; contrariou o envelhecimento físico com a jovialidade da alma e do intelecto, entregando-se à arte e aos jovens; autoretratou-se para a eternidade.
Viva Varda!, de Pierre-Henri Gibert (2023)
Visionado no Festival Doclisboa, na Culturgest