DA VAGA DE SALA - Especial DOCLISBOA

Stéphane Pires • 27 de outubro de 2023

'A Câmara', de Cristiane Brum Bernardes e Tiago de Aragão: as Mulheres de Brasília


Uma câmara, na Câmara. Uma câmara a filmar mulheres brasileiras, deputadas eleitas, na Câmara dos Deputados do Congresso Brasileiro, entre Maio e Julho de 2022, ainda no período de Jair Bolsonaro como Presidente da República, é a proposta que a dupla Cristiane Brum Bernardes e Tiago de Aragão apresentou esta noite no Cinema São Jorge, no Doclisboa. Mulheres mais novas, mulheres mais velhas; mulheres mais tarimbadas na cena política, mulheres a darem os primeiros passos; mulheres de esquerda, mulheres de direita; mulheres de negociação, de acordos, da realpolitik, do grande centrão da política brasileira - todas elas têm tempo e espaço em 'A Câmara' (2023). Apesar de se assumirem como pessoas de esquerda na conversa pós-filme, a dupla de realizadores salvaguardou que o ângulo passava por mostrar a Câmara como ela é, com a sua heterogeneidade e representatividade. Não há, portanto, o assumir de um dos lados da barricada, como Petra Costa fez, legitimamente, claro, no impactante 'Democracia em Vertigem' (2019); em 'A Câmara' há uma faceta institucional predominante.


Vemos acima de tudo muita determinação daquelas mulheres no combate político, não virando a cara à luta nas causas, ideias, propostas, posições que apresentam ou defendem, muitas vezes digladiando-se entre elas, como assistimos num debate entre duas deputadas sobre racismo, em que a dicotomia esquerda / direita foi bem evidente, com ânimos exaltados; questões fraturantes como racismo e aborto fazem subir decibéis e hostilidades sendo reflexo da enorme polarização e divisão que o Brasil vive, essencialmente desde o impeachment de Dilma Rousseff, culminando na posterior (inacreditável) chegada ao Palácio do Planalto de Bolsonaro, um divisionista e fomentador de ódios. Pelo meio temos as equilibradoras, as mulheres do centro, que acreditam na negociação acima de tudo, como uma arte, que têm o jogo de cintura necessário para ceder.


A divulgação do trabalho parlamentar é preocupação transversal: mostrar aos eleitos que estão a trabalhar, e muito, pelas bandeiras que as levaram até Brasília; as redes sociais (particularmente o Instagram) são o veículo que todas têm à disposição para chegar ao povo, o telemóvel é o instrumento, a câmara que está sempre à (e na) mão para disparar, melhor, para filmar e partilhar.


Estava à espera de debates acalorados entre esquerda e direita, entre homens e mulheres, de dramatização excessiva, mas confesso a minha surpresa no que toca à presença da religião, ao ver que o culto evangélico também se faz no Congresso, ora-se de olhos fechados, profere-se ámen vezes sem conta, canta-se com alma e emoção: deputados muitos, elas e eles, alguns pastores, que também são deputados. Estará o Brasil a caminho de uma teocracia? Depois lembrei-me daquela cena inaudita na noite da eleição de Bolsonaro em que este reza e celebra com o pastor.


'A Câmara', de Cristiane Brum Bernardes e Tiago de Aragão (2023)

Visionado no Festival Doclisboa, no Cinema São Jorge

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