DA VAGA DE CASA

Stéphane Pires • 28 de março de 2024

'Reunião', de Fran Kranz: uma conversa num espaço que sara, que cura


O acaso é tramado. Na véspera da sexta-feira santa (amanhã), inconscientemente, DA VAGA DE CASA chega-nos um filme cuja narrativa se dá, quase na íntegra, no interior das instalações de uma igreja e, muitas vezes, ficamos de frente para uma imagem de Jesus Cristo crucificado. Não sendo detentor de quaisquer crenças religiosas, apesar da minha educação com prática católica até à juventude, não deixa de ser irónico que em pleno período pascal me veja a refletir sobre uma história que senta (quatro) pessoas à volta de uma mesa, entre o ódio e a culpa, à procura do perdão, para a consequente redenção. 'Reunião' (2021), estreia do ator norte-americano Fran Kranz como realizador, tem lugar na sala mais reservada de uma igreja, da Igreja Episcopal (proveniente da Igreja Anglicana). Reconhecidamente progressista e liberal, a Igreja Episcopal dos Estados Unidos aprovou em 2015 o casamento ente pessoas do mesmo sexo, já antes, em 2003, tinha eleito o primeiro bispo homossexual, e, três anos depois, em 2006, entronizou a primeira mulher como bispo (da diocese do Nevada), Katharine Jefferts Schori, que, ciente das divisões potenciadas por este ato, pronunciou as seguintes palavras: "Se alguns nesta Igreja se sentiram feridos por decisões recentes, a nossa salvação e a nossa saúde estão de certo modo em perigo e é dever de todos procurar a cura e a união". Pois bem, é um espaço para a cura, para sarar, um espaço anti-arena que acolhe a 'Reunião': uma igreja onde se ensina o tocar do piano, onde o coro ensaia cânticos, onde os AA (alcoólicos anónimos) e o Al-Anon (familiares dos alcoólicos anónimos) se reúnem, que vemos e ouvimos sobre, no início do filme, guiados pela anfitriã Judy (Breeda Wool) e o seu ajudante, ambos inusitados, e até desajeitados, a corporizarem a leveza necessária e propositada desse espaço. Os planos fixos e relativamente demorados, no interior e exterior da igreja, na fase introdutória do filme, bem como as conversas entre a dupla de anfitriões e Kendra (Michelle Carter) - representante de um dos dois casais que vão ter a reunião - servem também para nos acomodar no espaço, para nos preparar calmamente, e até com uma pitada de nonsense, para o embate, numa sala fechada, durante praticamente todo o filme.


Fechada a porta da sala, por Kendra, os casais Gail (Martha Plimpton) / Jay (Jason Isaacs) e Linda (Ann Dowd) / Richard (Reed Birney) ficam entregues a si próprios, e encarregues de desenvolverem a reação a uma ação já ocorrida - que não nos é dada a conhecer previamente -, ou seja, é a reação árdua dos pais, no presente, que nos narra a ação trágica envolvendo os filhos de ambos, no passado. Percecionamos nas palavras de Kendra, na conversa inicial com Judy, que a fatalidade ocorreu há seis anos e, volvido esse tempo, com concordância e vontade de ambas as partes dá-se esta reunião, um encontro sem mediação. De um lado da mesa, vemos o casal Linda e Richard - de costas para Jesus Cristo crucificado, cuja cruz afixada na parede surge acima e no meio de ambos - a carregarem aos ombros a culpa e os pecados do filho; do lado oposto, temos Gail e Jay, com o ódio e a raiva ainda colados aos olhares.


Numa escolha perfeitamente acertada de utilização de câmara fixa - pelo meio houve escassas, curtas e lentas panorâmicas - nos rostos dos quatro protagonistas ao longo da extensa e extenuante conversa, Kranz alterna entre planos de rosto individualizados, planos de rosto por casal, planos gerais da mesa a mostrar os quatro, planos de frente para o rosto, planos de perfil, planos de quem fala e/ou de quem ouve, quase sempre curtos, em sintonia com as sucessivas trocas de argumentos, observações, interrupções, lágrimas e suspiros. Se a câmara estivesse móvel (oscilante e trémula) teríamos ficado tontos, em completa alucinação, sufocados, sem tempo e espaço alguns - que até com câmara estacionária foi difícil - para reflexão, para construção de perfil de cada protagonista enquanto indivíduo/pai/mãe.


Tremendamente interessante a forma como o filme nos mostra as pessoas a alternarem, num curto período de tempo, entre diferentes disposições, entre a cortesia, simpatia, cordialidade, no icebreaker inicial, e o ataque, confronto, acusação, no acalorar da conversa, pouco tempo depois, para a seguir, no fim, parecerem voltar ao início, quando deixam novamente de saber muito bem o que dizerem uns aos outros. Atingido o pico da tensão emocional, com toda a descarga de energias, todo um soltar de perguntas e respostas, Gail e Linda refletem uma na outra, em espelho, assim como Jay e Richard, assim como o casal de pais da vítima e o casal de pais do assassino, um assassino também ele vítima de uma sociedade, de um sistema, que falha, que falhou, e que continua, entre outras coisas, a ser incapaz de revogar a lei do uso e porte de armas.


O filme não acaba sem nos dar um pouco mais da desajeitada Judy e do ajudante (os anfitriões), e a luz, primeiro a luz natural que vemos entrar pela janela ainda na sala no término da reunião, e, depois, a luz que ilumina o caminho para a música que ecoa do coro que ensaia - a luz da redenção (da cura, da salvação, da libertação), ainda reforçada pelos holofotes que se acendem no exterior, no começar da noite.


Mass, de Fran Kranz (2021)

Visonado em Filmin Portugal

'Reunião', de Fran Kranz (2021)

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