A interrupção voluntária da gravidez continua sem estar consagrada na lei do Brasil. O aborto legal está apenas reservado a três situações: se a gravidez tiver origem num ato de violação; se a gravidez representar risco de vida para a mulher; se estivermos perante um caso de anencefalia fetal (um defeito que que danifica o tecido primitivo que formará o cérebro). Porém, em qualquer um destes três cenários excecionais, o tempo de gestação terá sempre de ser inferior a 21 semanas e seis dias. 'Levante' (2023), primeira longa-metragem de Lillah Halla, realizadora brasileira, mostra-nos uma reação de "sangue no olho", por parte de uma mulher, de várias mulheres, de uma equipa de jogadoras (de voleibol), incluindo a treinadora, de um grupo, de uma comunidade (queer), face ao ataque e ao espartilho a esse bem maior que é a liberdade, essa liberdade de escolha e decisão tão pessoal, tão particular, tão individual, que só a si (mulher) deve pertencer.
Movimentado por extenuantes exercícios físicos, no ginásio, ou pelas fogosas danças, na noite, e ritmado por eletrónica, funk brasileiro ou nova vaga de MPB (Música Popular Brasileira), mas também pausado por silêncio, para introspeção, reflexão e solidão, e para amor entre corpos, e para diálogos mais longos, a câmara de 'Levante' sabe mexer, alternar, estar e pousar.
Se uma rede divide o campo de voleibol a meio, onde Sofia (Domenica Dias) e as outras defendem e atacam, o arame farpado que vamos vendo ao longo do filme, no sobe e desce do morro - onde a jovem Sofia,17 anos, vive com o pai, viúvo e apicultor -, delimita, cria uma fronteira imaginária, de certo modo, uma prisão a céu aberto, sobrecarregada de alta tensão, que vemos, não raras vezes, nos cabos que ligam os postes, acima das cabeças, e nos escritos ou dizeres nos muros das ruas, uns a suplicarem por eleições, outros a porem Deus nos píncaros. E se o Mercosul (Mercado Comum do Sul) na América Latina, um pouco à semelhança do Espaço Schengen na Europa, facilita a transação de bens / mercadorias e a circulação de pessoas, diluindo o conceito de fronteira entre os países-membros, essa ideia de espaço comum esbarra depois na partilha de direitos, liberdades e garantias individuais. Sofia e o pai (Rómulo Braga) rumam ao Uruguai, noite dentro, rompendo a madrugada, como dois foragidos à lei, numa viagem de carro a atravessar o Estado do Rio Grande do Sul, onde as setas luminosas e as placas vão indicando o caminho para o aborto voluntário e legal. Ainda que filha de mãe uruguaia (falecida), Sofia não possui nacionalidade (uruguaia) - apesar de ter direito, não tratou da documentação - nem comprovativo de residência naquele país, pelo que, nada feito. Eis a fronteira.
Sem a liberdade do Uruguai, Sofia descontrola-se, enquanto outros controlam os seus passos. É em plongée [plano picado, de cima para baixo], como câmara de vigilância, que vemo-la no cubículo do WC a comprovar a veracidade e depois no escuro do quarto a pensar nas saídas possíveis para esta castração de liberdade e, simultaneamente, de sonho: está a uma semana de entregar os documentos e exames médicos para obtenção de uma bolsa de mérito que lhe permite ir jogar voleibol para o Chile. E de uma ajuda que parecia vir do céu, trazida pela câmara que desce pelo arranha-céus envidraçado na grande cidade, afinal, vem a vigilância, que ganha forma e corpo, pronta a persegui-la e demovê-la, em nome de uma rede-sistema-crença-doutrina. "Eu não quero ter, só preciso saber como", diz Sofia a Bel (Loro Bardot), com quem mantém uma relação afetiva e sexual. E à pergunta sobre quem é o pai, a resposta está nas imagens, numa foto que vemos na parede do quarto, enquanto ambas conversam, de um homem com máscara de lobo; ou seja, não há rosto, não há identidade.
Sofia não está só. Pai e treinadora (Grace Passô) sentam-se lado a lado, unidos na proteção a Sofia. Assim como as abelhas do pai unem esforços para ajudar a abelha-rainha, numa grande força coletiva, as indefetíveis amigas e colegas da equipa (de voleibol) - a fazerem lembrar o grupo da companhia de dança, e o seu espírito livre, em 'Ema' (2019), de Pablo Larraín, trazido em DA VAGA REALIZADOR DO MÊS, no último Dezembro - congeminam alternativas para amealhar dinheiro suficiente para que a sua jogadora-rainha possa ter opção de liberdade, ainda que na clandestinidade. A ilegalidade custa caro, e a insegurança é, muitas vezes, enorme. Mas se vemos as abelhas do pai a movimentarem-se de um lado para o outro, também vemos o mel a escorrer e a ganhar figura (aos meus olhos) de um espermatozoide, que, no plano seguinte, parecem multiplicar-se em centenas nas fitas douradas e festivas do pavilhão pronto a receber o jogo final da competição. A perseguição a Sofia tem forma física e mental.
Não há jogadora nem equipa verdadeiramente campeãs que desistam, que virem a cara à luta, que não enfrentem as adversidades, mesmo que do outro lado da rede, desta feita, o adversário seja uma lei a carecer de urgente revogação, o sistema inerte que gravita à sua volta e o fanatismo conservador e intolerante - o desfecho é imprevisível, e do caos ao onírico parece ter-se escrito direito por linhas violentamente tortas.
'Levante', de Lillah Halla (2023)
Visionado na Sala do Cinema Nimas
Este e outros escritos constam no Livro
À venda em Portugal: NA VAGA DE ROHMER - Escritos sobre (65) filmes | O Ano Zero | Atlantic Bookshop
À venda no Brasil: NA VAGA DE ROHMER - Escritos sobre (65) filmes | O Ano Zero - Livraria Ipê Das Letras
'Levante', de Lillah Halla (2023)