DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 9 de abril de 2024

'É o Amor', de João Canijo: a 'obrigação' performativa de Anabela


Nos últimos meses tenho visto filmes portugueses que se movem numa espécie de terra de ninguém entre o documentário e a ficção, numa diluição de fronteira entre realidade observada e realidade condicionada, originando uma simbiose. Estou a pensar em 'O Movimento das Coisas' (1985), de Manuela Serra; 'Terra Franca' (2018), de Leonor Teles; e 'Em Ano de Safra' (2023), de Sofia Bairrão. Os três filmes vão alternando imagens do quotidiano social, de comunidade, de paisagem natural, rural, arquitetónica, de trabalhos de mãos, de atividades agrícolas ou piscatórias, numa abordagem estilística mais ou menos poética, mais ou menos demonstrativa, mais ou menos contemplativa, mais ou menos observacional - os três filmes não situam deliberadamente o tempo e o espaço em que decorrem, e não apresentam uma narrativa linear -, com outras imagens mais pessoais, mais particulares, mais intimas, do quotidiano familiar, dentro de casa, onde a câmara é, aqui, mais condicionadora, está mais próxima, faz-se sentir, é invasiva, e àquelas gentes, que estão a abrir as suas vidas ao mundo, cabe-lhes interpretar a (nova) realidade. Numa simpática e enriquecedora conversa, há uns meses na Gulbenkian, a Manuela Serra dizia-me que não categorizava 'O Movimento das Coisas' como documentário, e, por sinal, a The Stone and the Plot, distribuidora do filme, classifica-o como longa-metragem de ficção. Diria que, no fundo, pouco interessa a possível ou impossível categorização de género. Menos poético e menos contemplativo diria que 'É o Amor' (2013), de João Canijo - o escolhido para DA VAGA REALIZADOR DO MÊS, em Abril -, comparativamente com os citados filmes de Serra, Teles e Bairrão, mas, por outro lado, é mais participativo, experimentalista, performativo, mais de argumento, menos de imagens, e, simultaneamente, o mais próximo de juntar realidade e ficção.


Ao injetar e imiscuir a atriz Anabela Moreira no seio das mulheres dos pescadores das Caxinas (Vila do Conde), responsáveis pela 'obrigação' - 'Obrigação' foi o nome original da curta-metragem que depois deu lugar à longa, e que denomina tradicionalmente o trabalho-dever das mulheres dos pescadores, que passa por recolher o peixe no cais e vendê-lo na lota ao melhor preço -, Canijo condiciona de forma incisiva e intencional a realidade. Anabela, enquanto atriz que faz um estágio de peixeira (sem deixar de ser atriz), com a mestre Sónia (quem chefia as restantes mulheres na 'obrigação' e gere o negócio da pesca, enquanto o marido Zé comanda o barco pesqueiro e os pescadores a bordo), vai desbloqueando, direcionando e construindo uma narrativa, um argumento, quase que ficcionando a realidade. Ou seja, enquanto Canijo, pela sua câmara, dá-nos a observar a realidade daquele ofício, cujo ângulo central é o trabalho da mestre (Sónia), e das mulheres por trás dos pescadores naquela comunidade piscatória, Anabela, pela sua convivência e relacionamento quotidiano (cerca de um mês) com a mestre Sónia, vai espoletando a história de vida daquela mulher, precisamente enquanto mulher, enquanto mestre, enquanto esposa, enquanto mãe.



É sem pressas, demorando-se em cada um dos diferentes tempos da 'obrigação', os momentos/tarefas que o ofício da mestre e das suas ajudantes contempla, que vamos vendo e vivendo as viagens de carrinha daquelas mulheres - Anabela incluída - entre as Caxinas e o porto de Aveiro; a descarga e recolha do peixe no cais com os rostos um tanto ou quanto incrédulos dos pescadores face à presença da câmara; o lavar, o separar e o pesar do peixe na lota, sob as ordens e diretrizes da assertiva e afirmativa mestre Sónia - sempre que necessário a chamar a atenção à aprendiz Anabela -; o transporte dos pescadores na carrinha de regresso a terra após dias a fio de mar; as contas e pagamentos em dinheiro vivo aos pescadores, por parte da também contabilista mestre Sónia; o amanhar coletivo das redes, com homens e mulheres, novos e velhos, com mais ou menos cantorias; os telefonemas entre Sónia, em terra, e Zé, no mar, com os números da boa ou da má pescaria; os telefonemas de Sónia com os compradores do peixe, sobre o que e quanto se pescou. Tudo isto a câmara de Canijo nos dá a observar, sempre preocupada com o retrato sociológico mais completo e preenchido deste ofício.


Por outro lado, Anabela, num certo jogo de contrastes com Sónia, assumindo fragilidades, inseguranças, dúvidas, vai estendendo uma autêntica passadeira, quase tão grande como a caminhada de ambas a passo vigoroso à beira-mar, para que Sónia se espraie, do alto da sua confiança de mulher realizada, feliz, virtuosa e convicta do seu caminho. Cada uma delas calça os respetivos sapatos no filme - entretanto a câmara mostra-nos o o encaixe dos pés de ambas numa máquina de ginásio de rua, de frente para o mar - e anda sobre eles até ao fim: Anabela a identificar as suas indefinições perante as certezas de Sónia; Sónia a enfatizar as suas certezas em resposta às indefinições de Anabela. "O amor é lindo para quem sabe amar; a vida é bela para quem sabe viver", diz a mestre, para quem, no fundo, é tudo uma questão de sabedoria popular e de fé, fé religiosa, católica. Logo no plano inaugural de Anabela no quarto vemos uma cruz azul a emergir na parede, repetida depois noutros planos dos monólogos de Anabela de cara virada para a sua câmara de mão - nestes monólogos Canijo parece querer vincar a ideia do experimentalismo que está a levar a cabo no filme, ou seja, Anabela é Anabela, atriz no filme (apesar do estágio-convívio com aquela família de pescadores) e atriz na vida real. É a realidade que estamos a viver, ainda que (obviamente) condicionada. Da cruz do quarto, para a procissão das velas e para a missa dominical, aqui, nos eventos religiosos, a comunidade cresce e os rostos são muitos, entre eles, claro, Sónia e o marido Zé, acompanhados por Anabela. Fé católica, valores tradicionais e conservadorismo são âncoras às quais a mestre Sónia se agarra, e quando, habilmente em diferentes ocasiões, é questionada e espicaçada por Anabela, no que toca ao papel da mulher no casamento e à igualdade entre homens e mulheres, Sónia assume-se como seguidora da mãe, fiel aos seus conselhos matrimoniais e familiares.


'É o Amor' existiria sem Anabela? Sim, mas não seria definitivamente a mesma coisa. O condicionamento da realidade ficaria apenas reservado à câmara, e aí o filme teria de viver mais e, essencialmente, das imagens. Anabela foi tirando o argumento dos bolsos do avental e, no fim, a história de vida da mestre Sónia sobrepõe-se à história do ofício das mulheres dos pescadores das Caxinas.


'É o Amor', de João Canijo (2013)

Visionado em Filmin Portugal

'É o Amor', de João Canijo (2013)

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