'Crepúsculo em Tóquio', de Yasujiro Ozu: num pedestal distintivo
Ponto prévio: do mestre Yasujiro Ozu já tinha visto 'Viagem a Tóquio' (1953); 'A Flor do Equinócio' (1958); 'Bom Dia' (1959); 'O Fim do Outono' (1960); 'O Gosto do Saké' (1962). Pois bem, 'Crepúsculo em Tóquio' (1957) é distinto dos demais, é distintivo, é um tratado, é de pedestal. É mais tenso, é mais dramático, é mais emotivo, é mais trágico, é mais nebuloso, é mais sombrio, é mais escuro, é mais fatalista, é mais impactante no uso do som (ruídos e música), e tem a cena de exterior mais bela de todas, de uma beleza poética: Akiko (Ineko Arima) e o pai da criança que ela transporta no ventre sentados à beira-rio, por baixo de um céu cinzento, opaco, em perfeita sintonia com a água parada, que parece nem correr; no horizonte os barcos fumegantes, atracados no porto, a adensarem a neblina - não há (nem haverá) luz no caminho. E o omnipresente comboio no cinema de Ozu, seja visual seja sonoro, reveste-se de personagem interventiva no destino, na fatalidade, desta feita forçando a viagem. Se 'Crepúsculo em Tóquio' fosse o primeiro filme que tivesse visto de Ozu ficaria convicto da sua deliberada intenção de prenúncio, ao remeter-nos várias vezes para imagens do comboio, da ponte/viaduto por onde passa, e dos cabos elétricos, mas a correspondência que vemos entre essas imagens e o impacto direto na narrativa, mais à frente, é deveras surpreendente, porque os comboios a circular, utilizados muitas vezes como separadores na mudança de local, de interior para exterior ou vice-versa, fazem parte, invariavelmente, da sua paisagem cinematográfica. Aborto, divórcio, traição, bofetadas, morte por acidente e os momentos de clímax - um evitado, um atenuado e um de espera prolongada - conferem tensão à serenidade.
Não é só o comboio que vemos repetidas vezes nos filmes de Ozu, os mesmos atores também, até com nomes de personagens repetidos de filme para filme - em 'Crepúsculo em Tóquio', Chishu Ryu, no papel de Shukichi, o pai, e Setsuko Hara, como Takako, a filha mais velha e irmã de Akiko, são mais do que habitués, sendo bem reconhecidos de 'Viagem a Tóquio' -, igualmente os temas e cenários familiares, com o epicentro na relação de pais e filhos, os quase rituais de entrega da pasta de trabalho do homem à esposa ou à filha ao chegar a casa, seguido do tirar do casaco e do pendurar do chapéu, bem como as conversas demoradas ao sabor do chá, sentados no tatami de casa, ou ainda os almoços nos restaurantes tipicamente nipónicos e, à noite, os copos (de whiskey ou saké) em bares com toque e influência ocidental, aqui sentados ao balcão, em bancos altos. Tudo isto 'Crepúsculo em Tóquio' também tem.
Assistimos em 'Crepúsculo em Tóquio', além de um confronto geracional, a um choque entre um velho e um novo Japão. Akiko, filha mais nova de Shukichi (o pai que cuidou das duas filhas, após a partida da mãe), estudante universitária, representa esse novo Japão, mais liberal: escolhe com quem namora, arredando o pai da pretensão de arranjar-lhe casamento, como habitual à época; decide abortar, ainda que sem o conhecimento do pai; frequenta bares e casas de mahjong, muitas vezes sozinha; fuma; chega tarde a casa; não se entrega às tarefas domésticas. Do outro lado, no velho e conservador Japão está o pai Shukichi, que escolheu o marido para Takako, a filha mais velha, e que agora se arrepende - as habituais incoerências e contradições nas personagens de Ozu, especialmente na figura do homem-pai - porque esta (mãe de uma pequena criança, voltou para casa do pai) está em vias de se divorciar. Do lado do pai está a irmã Takako, servil, age como empregada da casa, cuida atenciosamente do pai e da irmã; e como representação de um pensamento mais retrógrado temos ainda a polícia, que decide deter Akiko por estar sozinha na rua a altas horas, e também os colegas homens de Akiko, que passam o tempo todo a jogar mahjong, e que, na ausência dela, acusam-na de promiscuidade e imoralidade.
Na habitual serenidade e quietude em que os filmes de Ozu se desenvolvem, o som, em 'Crepúsculo em Tóquio', emerge como catalisador de tensão, em diferentes locais e momentos. Em casa de Shukichi e das filhas, ouvimos constantemente o tic-tac do relógio, fazendo-nos sentir a passagem do tempo a cada segundo, numa espécie de contagem subconsciente e decrescente até ao evento que fratura o seio familiar, que, paulatinamente, se vai degradando; na cena de exterior mais bela de todas (já citada no primeiro parágrafo), a tensão é agudizada pelo ruído semelhante ao tic-tac de relógio, mas que aqui é ecoado pela logística do porto, interrompido ainda pelas sirenes dos navios, isto enquanto Akiko e o pai da criança discutem o que fazer com aquela gravidez indesejada e inesperada; já na clínica que faz os abortos ouvimos sons tribais que perturbam aquele momento; e, quase no final, na partida de comboio da mãe de Akiko e Takako - um dos três momentos de clímax (este é o de espera prolongada) -, os cânticos que emanam da estação, enquanto a mãe limpa a janela embaciada com um lenço branco, aumentam a tensão a um nível que nunca tinha presenciado no cinema de Ozu, a despedida é selada por mais um som, desta feita o ruído que sinaliza a partida do comboio. Mas o contrário também é possível, no segundo momento de clímax (o atenuado), Ozu usa a música (festiva, de harmonia) para desdramatizar a conversa reveladora entre Akiko e a mãe. E ainda temos o som das buzinas dos carros que só ouvimos, não vemos, no escritório de Shukichi e ao almoço no restaurante; e os diferentes estilos musicais à noite, consoante o bar, mais nipónica no Kotobuki, mais ocidentalizada no Gerbera ou no Étoile. Só falta falar do primeiro momento de clímax (o evitado), em que aqui é também o som, desta feita da voz de Takako, que impede a pergunta de Akiko ao pai.
Quando me ponho a pensar nas obras de Yasujiro Ozu é frequente confundir cenas de filmes, tendo em conta os muitos déjà-vu, não me parece que isso venha a acontecer com 'Crepúsculo em Tóquio', definitivamente.
'Crepúsculo em Tóquio', de Yasujiro Ozu (1957)