'Disco Boy', de Giacomo Abbruzzese: uma dança de fusão
Franz Rogowski foi o responsável pela escolha de Disco Boy (2023), de Giacomo Abbruzzese (a sua primeira longa-metragem), para estreia do NA VAGA DE ROHMER na Festa do Cinema Italiano, este domingo no Cinema São Jorge. Só conhecia este ator alemão de um único filme - 'Nos Corredores' (2018), do também germânico Thomas Sutber, onde contracena com a brilhante Sandra Huller -, ainda assim, mais do que suficiente para me convocar a vê-lo outra vez. Lendo a breve sinopse, percebi que teria a oportunidade de ver Rogowski como militar da Legião Estrangeira (corpo militar autónomo das Forças Armadas de França, composto exclusivamente por estrangeiros), depois de tê-lo visto como um solitário, alienado, taciturno operador de hipermercado, eis então um provável prolongamento - até com um upgrade ou downgrade, consoante a perspetiva - da sua arte corporal, da sua genialidade em pouco ou nada dizer (por palavras), de um poço profundo de emoções contidas, lá nas entranhas, de uma vulnerabilidade forte, de uma transparência misteriosa, de uma alegria roubada, do seu mundo interior. E sim, o Christian de 'Nos Corredores' passou tudo isto para Aleksei em Disco Boy - de tal maneira que até poderia ser a mesma personagem, não importando a ordem temporal - e, preso entre fantasmas do passado e do presente, prossegue em busca de nova identidade, procura a libertação. Nesta ida para França, numa deriva à procura de um novo rumo, deixando para trás uma Bielorrússia distante, Aleksei lembrou-me também Yoav, o protagonista de 'Sinónimos' (2019), de Nadav Lapid, que abandona Israel; ambos chegam sem eira nem beira, transportando apenas vontade de recomeçar.
Aproveitando uma viagem à Polónia para apoiar a equipa de futebol bielorrussa, num visto concedido para apenas três dias em solo polaco, Aleksei e um amigo rapidamente trocam o autocarro pela boleia de um camionista, trocam os cânticos de claque pela música eletrónica de onda psicadélica para darem asas e azo ao sonho de deixar para trás as fronteiras e chegarem a França. O trauma que Aleksei parece já trazer consigo desde a Bielorrússia - não temos contexto, nem informação alguma sobre o seu passado no país de origem, ficamos reféns da presunção, da imaginação, fruto da realidade que mais ou menos conhecemos daquele país, uma autocracia sob o jugo do eterno Lukashenko, um autêntico pajem de Putin - é agudizado pela perda do amigo; o resto da viagem é para fazer a solo. Se Yoav em 'Sinónimos' é amparado por um casal de intelectuais parisienses, Aleksei é absorvido pela Legião Estrangeira, pronta a dar-lhe uma identidade e um futuro em França: só tem de saber resistir, sem arrependimentos, como na letra da música de Édith Piaf.
Quando já estávamos completamente embrenhados em Aleksei e no seu novo rumo, eis que Giacomo Abbruzzese nos lembra que este é um filme de guerra, e que numa guerra há sempre dois lados, e aí percebemos e pensamos nos planos de abertura do filme, em que vemos corpos amontoados, armados, e rostos de outra cor, diferentes da cor de Aleksei: Jomo (Morr Ndiaye) e a irmã Udoka (Laetitia Ky). Jomo lidera o grupo revolucionário e armado MEND (Movimento para a Emancipação do Delta do Níger) na Nigéria. Abbruzzese quis mostrar-nos como se pode ser vítima em simultâneo, no dois lados da guerra, como resultado de um processo: Aleksei, como militar da Legião Estrangeira que procura resgatar reféns franceses, e Jomo, que luta pela liberdade do seu povo, comunidade. À irmã Udoka caberá a ligação onírica e imaginária entre os dois lados, entre quem vive e quem morre, a encarnação e a fusão, no final.
Heterocromia (um olho de cada cor), fogo, luzes, música e dança são elementos centrais nesta simbiose dos dois lados da guerra, das duas vítimas, num vincado revestimento sensorial e visceral que o filme nos apresenta. A heterocromia dos irmãos Jomo e Udoka parece saltar para Aleksei, que, após a luta com Jomo, é questionado sobre o que lhe aconteceu ao olho, e é nesse olhar marcado por olhos de cores diferentes que uma dançarina na discoteca parisiense fascina Aleksei, tornando-se numa obsessão: aos nossos olhos é Udoka, aos de Aleksei será alguém ligado a Jomo, na realidade poderá ser apenas uma rapariga africana com heterocromia. Abbruzzese parece querer brincar com o imaginário de todos. O fogo das fogueiras ilumina e aquece as danças dos irmãos Jomo e Udoka, com os corpos de ambos a entrarem numa espécie de ebulição, o mesmo fogo incendeia casas e mata, sem que ninguém vá apagá-lo, de tão forte que é até na água o fogo arde e alastra, num efeito visual esplêndido; e se o fogo serve para queimar vidas, também pode servir para incendiar e apagar (falsas) identidades, daquelas que geram dizeres nas paredes da Legião Estrangeira, qualquer coisa como "podes tornar-te num filho que França herdou". As luzes, na guerra como na discoteca, são como flashes, intermitentes, tornam o percetível em impercetível, e vice-versa, no escuro; a câmara decide pôr-nos a ver as cenas de guerra em infravermelhos, em particular a luta corporal de Aleksei e Jomo, quase como uma dança. E para haver dança é preciso música, mas Aleksei rejeita a música que recusa arrependimentos, e responde com silêncio e corporalidade em vez de cântico marchante perante o Non, je ne regrette rien (Édith Piaf): a respiração faz mover os músculos nas costas e liberta o suor, sim, é possível esquecer o frio, e o calor, mas há coisas que não se esquecem, responde o corpo de Aleksei. A música de Aleksei é eletrónica (ao longo de todo o filme sempre a cargo do DJ e produtor musical francês Vitalic) - por vezes, só interior, guiando-o nas profundezas do seu mundo -, mas na discoteca (a música eletrónica) agora ganha vida e alma e é hora de Aleksei largar o balcão e os Bordeaux que já ninguém bebe, receber a energia e encarnar o espírito de Jomo, fundir-se com ele através de Udoka, ou de Manuela (nome da dançarina da discoteca).
Giacomo Abbruzzese quis em apenas hora e meia fazer um filme de guerra e guerrilha, alimentado por imagens aéreas de helicóptero, um filme de retrato de atores de guerra dos dois lados, um filme sobre o impacto e os resquícios da guerra na psique, um filme sobre o interior da Legião Estrangeira, um filme sobre expatriados, suscitando reflexão sobre o conceito de fronteiras; a juntar a todos estes temas, vemos a obsessão em manter os dois lados da guerra de mãos dadas até ao fim. É demasiado, é exagerado, mas também ousado, da parte de Abbruzzese (levou 10 anos a fazer o filme, entre vários produtores, entre França, Itália, Bélgica e Polónia), e se à ousadia juntarmos a presença diferenciadora, transcendental (diria até) de Franz Rogowski - brilhante no já referido impacto e resquícios da guerra na psique, bem coadjuvado e complementado pela música de Vitalic -, Disco Boy é uma guerra que vale a pena.
'Disco Boy', de Giacomo Abbruzzese (2023)