'Una Sterminata Domenica', de Alain Parroni: porquê trocar o belo ócio por um final forçado?
Na senda de descobrir novos realizadores italianos, estreantes em longas-metragens, o NA VAGA DE ROHMER volta à secção competitiva da Festa do Cinema Italiano - depois de Disco Boy (2023) - para Una Sterminata Domenica (2023) [‘Um Domingo Interminável’], de Alain Parroni, esta segunda-feira no Cinema São Jorge. Surpreendentemente, ao contrário do que antevia, o filme retrata uma juventude no presente com um cunho identitário marcadamente herdeiro de um passado: o passado do cinema neorrealista italiano. Os smartphones ou os portáteis que os três jovens (protagonistas) seguram nas mãos pouco mais servem do que para pontuar determinados momentos em que estão juntos e, simultaneamente, isolados, cada um no seu mundo - a câmara estaciona uma ou outra vez para nos mostrar que isso acontece – mas essa não é definitivamente a tónica dominante. Estes três amigos, entre os 16 e os 19 anos, vivem praticamente na rua, da rua e das suas variadas explorações. Por meio de ócio, tédio, tempo eterno e mundo próprio, 'varrem' as ruas, a pé, de mota ou de carro descapotável, numa autêntica vagabundagem clássica a fazer lembrar as deambulações de Ettore e dos amigos em Mamma Roma (1962), de Pasolini, num outro tempo. Exploram a vida, aquilo que os rodeia, intervindo nela sempre que podem, entre turistas, nas estátuas de Roma, com o cão danado na quinta, com os sapos no riacho, ou então, observando, a missa dominical, as campas no cemitério, a arma segura no coldre do militar. Sem redes sociais, sem jogos online, sem isolamentos em casa, sem álcool, sem drogas, sem aborto perante gravidez inesperada, Alex (Enrico Bassetti), Brenda (Federia Valentini) e Kevin (Zackary Delmas) têm na rua a versão clássica do seu parque de diversões.
Dotada de enorme subtileza, sensibilidade e sentido, a câmara de Alain Parroni é exímia a delimitar o espaço e a organizar o movimento, mostrando-nos, com um pano-travelling, o vaguear indefinido, como que um andar à roda, de Alex, Brenda e Kevin pelas ruas de Roma, apinhadas de gente, num domingo em que ecoa a missa do Papa e eles ainda sem dormir; mostrando-nos como o ócio pode ser belo, com os devidos enquadramentos: Brenda e Kevin esparramados no banco de trás do descapotável amarelo - ele de pernas ao alto - enquanto Alex tenta arrancar e não consegue, ou num lento travelling que deixa Alex sozinho, a refletir, debaixo de sol - já depois de saber que provavelmente a namorada Brenda está grávida - e aproxima Brenda e Kevin novamente esparramados, mas desta feita literalmente a dormirem no carro, imediatamente seguido de um travelling lateral que acompanha a corrida desenfreada de Alex na mota - resolve começar a trabalhar para sustentar o filho que haverá de nascer -, ou ainda Kevin sentado no sofá ao lado da avó de Brenda (a única casa do filme é a casa da avó de Brenda), a olhar fixamente para a televisão enquanto ela ressona, juntando-se o ronco ao ruído da máquina que lava a roupa; mostrando-nos os diferentes estados de espírito e de alma, num contre-plongée [plano contra-picado, de baixo para cima] em que, após uma conversa existencialista entre os rapazes e o questionamento de futuro por parte de Alex (o mais velho), este (Alex) surge no topo de uma ponte pedonal, sentado em cima da responsabilidade de vir a ser pai, e, em baixo, com uma imensidão de escadas por subir, está Kevin, nos seus 16 anos, sempre de marcador em punho, ou de algo que possa pintar ou riscar superfícies por onde passa, vendo lá em cima o seu único limite, o céu, e nesse corredor pedonal o gradeamento, a vedação, que enjaula , prende, aprisiona Alex na sua angustia existencial, enquanto Kevin procura devolvê-lo novamente à liberdade eterna da juventude; mostrando-nos em fixos e demorados planos gerais os espaços em que eles repousam, entre o ócio e o tédio, seja o descampado (com uma estrutura metálica abandonada) onde passam quase todo o tempo - a fazer lembrar o descampado dos miúdos de Mamma Roma -, seja a área, também ela descampada, que envolve os blocos de apartamentos da casa da avó de Brenda, seja a caravana e a quinta de Domenico, para onde Alex vai pastar ovelhas. Todos estes lugares ficam nos arredores esquecidos de Roma, mais perto do mar. E ainda vemos o céu laranja, o lusco-fusco, a aurora, o pôr-do-sol, na terra e no mar.
Portanto, eis a questão que se impõe: porquê trocar o belo ócio por um final forçado? James Vaughan, jovem realizador australiano, autor de Friends and Strangers (2021) - filme já aqui trazido em DA VAGA DE CASA -, dizia, numa entrevista, que queria fazer um filme em que nada acontece, em que a vida simplesmente corre. E conseguiu isso com a sua primeira longa-metragem. Até aos vinte minutos finais, mais coisa menos coisa, Una Sterminata Domenica foi uma bela versão próxima dessa ideia, mas Alain Parroni quis optar pela disrupção, pelo final forçado, vergando protagonistas, e nós público, ao caos, ao desnorte, à desordem, à alucinação visual e sonora, talvez numa tentativa de sacudir o tédio que poderia estar a emanar daquele belo ócio que vimos e vivemos, até então. Mas o tempo do tédio é o do vazio, da resistência à passagem do mesmo [lembrando aqui Heidegger e António Castro Caeiro, no livro 'O QUE É A FILOSOFIA?'], e esse tempo vivi-o nesses últimos 20 minutos de filme, um tempo curto que virou longo, que demorou mais tempo a passar do que os 90 minutos iniciais (sensivelmente).
'Una sterminata domenica', de Alain Perroni (2023)