Dad’s Lullaby, de Lesia Diak: da guerra para casa
Golpes, feridas, cicatrizes, em tempo de guerra não é só no campo de batalha que surgem, que alastram, que perduram. A casa que se deixa para ingressar na guerra, a mesma casa para onde se dá o retorno mais tarde, quando isso é uma possibilidade, acolhe, absorve e reflete esses mesmos golpes, essas mesmas feridas, essas mesmas cicatrizes. Mazelas, marcas, sequelas que não vemos nas peças jornalísticas da guerra - em loop -, nem mesmo nas reportagens de maior profundidade, até porque não são observáveis com nitidez a olho nu, ou de câmara fugidia, invasiva e ameaçadora. Só mesmo uma câmara-testemunha-privilegiada possui a lente certa, capaz de captar e fazer-nos identificar os danos, a mossa causada, e a (im)possível reparação pretendida. A ucraniana Lesia Diak fez uso da sua experiência pessoal enquanto ex-namorada de um paramédico regressado da guerra para se converter nessa câmara-testemunha-privilegiada dentro de casa da família de Serhiy - um militar que em 2018 regressa a casa após três anos na linha da frente, recordemos que a guerra no Donbass (Ucrânia) teve início em 2014 -, com a mulher Nadia e os três filhos do casal, que no decorrer do filme passam a quatro, o filme Dad's Lullaby (2024) ['Canção de embalar do pai', em tradução literal] que a realizadora apresentou este domingo à noite no Doclisboa. Foi mesmo de voz embargada e olhos lacrimejantes que Lesia Diak, no final da sessão, falou-nos da ideia, do processo, da relação de amizade que desenvolveu com a família - após mais de um ano de coabitação naquela casa - e de um happy end que gostava de ter mostrado no seu filme.
Em menos de 80 minutos de película, Lesia consegue fazer-nos ver as consequências da guerra naquela casa em cinco dimensões: no combatente Serhiy, na mulher Nadia, no casal, nos filhos, e na família como um todo. Apatia, ânsia de solidão, vazio, tomam conta de Serhiy, arrancado em cuecas do beliche pelos três filhos, e um chocolate como presente, no seu dia de aniversário. De roupão ou sem camisa, arrasta-se pela casa, sem o sossego que deseja, tal não é a densidade populacional naqueles compartimentos tão pequenos, que, pelo espaço que a câmara/Lesia precisa de preencher, ficam ainda mais reduzidos; a isso junta-se a barafunda dos miúdos - também eles quase sempre semidesnudados - em brincadeiras onde representam teatros de guerra, com direito a lança granadas, pistolas montadas com legos e sonoridade a preceito; do outro lado, mas muito perto, resta a cozinha, onde Nadia - de barrigão a carregar o quarto filho - não tem mãos a medir para alimentar tantas bocas. A Serhiy não sobra alternativa e lá se vai envolvendo no rebolar pelo chão com os filhos - perante o olhar que a câmara capta de Nadia a observar do alto, no cimo do beliche, um olhar de nostalgia, acima de tudo, do que pouco resta daquilo que se terá perdido - ou a ajudar a mulher a cortar os pepinos para a robusta salada que se prepara, salada essa que depois prefere comer sozinho na companhia de uma côdea de pão. Nos intervalos daquela convivência um tanto ou quanto forçada, Serhiy escapa-se para os fugidios cigarros à janela. Mas a janela que vemos não é sempre a mesma, a janela que dá para a noite escura e onde o vermelho do cigarro vigorosamente puxado por Serhiy vira depois bola da mesma cor numa visão difusa - por vezes outras bolas de outras cores juntam-se à vermelha, numa visão desfocada, preenchida por espécies de sinais ou símbolos no escuro, levando-nos para a mente (de Serhiy) retida algures - enquanto este vai alternando silêncios e reflexões de guerra. Aqui não está sozinho, está a falar para a câmara que depois devolve um rosto, o rosto de Lesia, nas conversas que têm a dois. E depois percebemos que aquela pacatez nas conversas de Serhiy e Lesia não poderia ser na casa sobrelotada da família. Ao injetar no filme estes trechos ou fragmentos de diálogos em que ambos falam das suas experiências - ele, de quem esteve na guerra; ela, de quem sofreu as marcas da guerra no relacionamento com o seu antigo namorado, um paramédico que na ótica de Serhiy viu demasiado sangue e deve ter sentido falta dessa adrenalina -, Lesia consubstancia e corrobora pela voz na primeira pessoa de Serhiy aquilo que vamos vendo nas imagens dentro de casa. E só no final percebemos que esses diálogos de Serhiy e Lesia se dão mais à frente na linha do tempo.
Já Nadia manifesta-se mais pelo silêncio, pela contenção - mesmo que às vezes vá suspirando pela falta de cooperação do marido -, pelas tarefas que vai executando, pela esperança que já se esvaiu do rosto. Vai aguentando o peso da barriga e o peso da casa, mesmo até quando tem de explicar a um dos filhos o que é ética militar no teatro de guerra, quando e como alvejar; ou quando tem de auxiliar a discernir as palavras artéria e artilharia, pois na cabeça daquelas crianças o léxico bélico é bastante popular, não estivesse ele disseminado nos vídeos com músicas que um dos filhos vai vendo amiúde no telemóvel. Nadia é o forte, há um enquadramento fabuloso que mostra Nadia maior, mais robusta ainda, com a câmara próxima e os três filhos perfilados em sequência a procurarem o seu conforto, o aconchego, o afeto a que ela nunca se furta, fazendo os possíveis para atenuar a carência (afetiva) que os três emanam; Nadia é o verdadeiro porto de abrigo naquele barco-família prestes a afundar, assim vemos a casa em alguns planos inclinados da câmara de Lesia.
A janela semiaberta e os planos do exterior da casa vão anunciando a necessidade de escape de Serhiy. "Estou a viver num mundo só meu. Criei isso para mim. É um escudo para não enlouquecer", diz Serhiy a Lesia. Afastado dos quatro filhos - nasceu entretanto uma menina - e de Nadia, Serhiy contraria assim a reparação que o filme de Lesia foi mostrando como sendo possível, tornando-a impossível, e não vai ter happy end [como diz a canção do brasileiro Tom Zé], um final feliz que Lesia queria e que a realidade contrariou. Já depois do filme, a realizadora disse-nos que Serhiy voltou mais tarde para a guerra e entretanto regressou da mesma em estado de grande debilidade.
Dad’s Lullaby, de Lesia Diak (2024)
Visionado no Doclisboa, Culturgest
Dad’s Lullaby, de Leslia Diak (2024)