'Vozes das Margens', de Ana M. Carvalho e Richie Machado: a resistência natural do portunhol
A norte do Uruguai, na zona fronteiriça com o Brasil (o estado de Rio Grande do Sul), em Rivera, Artigas ou Cerro Largo, um dialeto que mistura espanhol (do Uruguai) e português (do Brasil), herdado de geração em geração, vai resistindo à falta de reconhecimento oficial, à proibição nas escolas e nos trabalhos, ao preconceito do Sul, da capital Montevideu, à renúncia dos mais jovens - é o portunhol. A professora de linguística Ana M.Carvalho, brasileira, e o editor Richie Machado, do Paraguai, trouxeram 'Vozes das Margens' (2024), esta sexta-feira ao Doclisboa - o nosso primeiro filme no Especial DA VAGA DE SALA -, através de testemunhos reais, orgulhosos, convictos e fiéis ao portunhol.
Um velho cansado que desenha as suas longínquas incursões a cavalo no Brasil; uma velha que se emociona com a beleza que é poder passar a fronteira com o país vizinho a caminhar; uma outra velha que fala portunhol com os filhos, apesar de estes responderem em espanhol; um pastor que deu o nome de morena a uma das vacas e para quem o portunhol é um património cultural daquelas gentes; a mulher que já não consegue falar portunhol em casa porque os filhos não querem e não deixam e que no trabalho só pode falar o dialeto com os colegas fora do expediente; um jovem da lavoura que desistiu de uma experiência em Montevideu porque não percebia a língua e vice-versa, confessando com uma candura desconcertante que só sabe falar assim e nada mais; um universitário que fala da repugnância com que o portunhol é visto na academia, associado a uma classe mais baixa, menos instruída, mais arcaica; um homem que fica nervoso só de pensar que vai ter de falar em espanhol em determinadas alturas; um leitor que nos lê versos escritos em portunhol, porque, apesar de na escola não se ensinar o dialeto, há autores que publicam livros.
Enquanto ouvimos as histórias de vida destas gentes de um Uruguai com açúcar de Brasil, entrelaçadas pelas línguas de lá e de cá, vemos os carris das linhas de comboio a entrecruzarem-se; vemos as raízes dos vigorosos troncos das árvores ancestrais e o prolongar da árvore pelos galhos, as folhas, entre o chão e o céu, a resistir à passagem do tempo e às suas mutações - como o portunhol -; vemos os trabalhos das mãos da mulher que faz a tarte com as maçãs da quinta, que faz o queijo com o leite das vacas que vemos nos longos e verdes pastos ou enquadradas entre as laranjeiras - um verdadeiro postal bucólico -, que corta a carne para picar e fazer raviolis, influência do Brasil, que, por sua vez, adotou-os dos italianos que chegaram em massa à Terra de Vera Cruz entre os finais do século XIX e os inícios do século XX; vemos planos gerais dos bairros com casas pequenas e humildes, muitas paredes de tijolo, mas onde as gigantescas panelas garantem que a fome ali é para saciar; vemos uma ponte que une; e finalmente vemos as palavras portunholas na página do livro dos versos que ouvimos.
'Vozes das Margens', de Ana M. Carvalho e Richie Machado (2024)
Visionado no Doclisboa, Cinema São Jorge