'A Hipnose', de Ernst De Geer: sair da norma e abandonar a persona
"We shall never surrender" [Nunca nos renderemos], disse Winston Churchill; “Ask not what your country can do for you, ask what you can do for your country” [Não perguntem o que é que o vosso país pode fazer por vocês, perguntem o que vocês podem fazer pelo vosso país], disse John F. Kennedy; "Yes, we can" [Sim, podemos], disse Barack Obama; "Make America great again" [Tornar a América grande novamente], diz Donald Trump. Churchill apelava à coragem da nação, num todo, durante a segunda guerra mundial; Kennedy instigava a confiança dos seus compatriotas nas suas potencialidades enquanto indivíduos; Obama enfatizava a crença na concretização do sonho, na possibilidade; Trump repete a ideia antiga da campanha de Ronald Reagan para que os seus apoiantes rejeitem o presente e procurem resgatar o passado. Políticos em diferentes tempos a criarem slogans - hoje fala-se mais em soundbites -, atuando para as plateias, em púlpitos que viram palcos, vendendo uma persona ancorada numa ideia-chave. No mercado laboral dos dias de hoje facilmente podemos fazer uma analogia entre esses slogans políticos (históricos) e o pitch - assim se denominam as apresentações orais, curtas e diretas, para vender uma ideia de negócio ou para alguém vender-se a si mesmo numa entrevista de emprego. Lembro-me bem de ter perdido uma oportunidade de trabalho num já extinto jornal online por não ter preparado o pitch (termo que ainda não se ouvia por estas bandas há 17 anos) certo na altura, pois acabei por dizer à entrevistadora que preferia ler o jornal em papel, desabafo esse que espoletou um olhar de reprovação intimidatório da senhora, levando ao desfecho abrupto da conversa. Ingenuamente genuíno aprendi a lição. Uns dias depois, numa outra entrevista, desta feita para uma agência de comunicação, quando questionado se gostava de vela - modalidade essa que até hoje não me desperta o mínimo interesse -, respondi de imediato que sim, que adorava todos os desportos: contratado! Já no universo das startups, o pitch é a uma verdadeira atuação num palco para conquistar compradores, melhor, investidores. E é precisamente este universo que Ernst De Geer escolhe e explora para sair da norma, sair das convenções, sair das regras escritas e não escritas, em 'A Hipnose' (2023) - primeira longa-metragem deste jovem sueco que merece a escolha DA VAGA REALIZADOR DO MÊS (de Outubro).
André (Herbert Nordrum) e Vera (Asta Kamma August) são um casal de jovens namorados que partilham a mesma casa e o mesmo trabalho. Vera debita o pitch sobre a sua experiência traumática enquanto criança no momento em que iniciou a menstruação e a hemofilia que experienciou, levando a que jorrasse sangue que podemos imaginar em quantidade suficiente para pintar toda parede vermelha atrás dela, que faz de pano de fundo para a gravação que seguirá para o concurso de startups - um aplicativo destinado à saúde no feminino, com especial ênfase nos países em vias de desenvolvimento, promovida a partir de um dramático testemunho pessoal da cofundadora. Assim arranca o filme e, mais ou menos a meio, quando ficamos a saber que Vera nunca sofreu de hemofilia e que é apenas uma encenação para vender a app Epione (nome da deusa grega que acalmava a dor), compreendemos com maior naturalidade o efeito que aquela sessão de hipnoterapia - Vera procurou inicialmente para largar o tabaco, rapidamente resvalou para o expressar da sua incapacidade em assumir as suas vontades, opiniões, decisões, aceitando uma certa submissão à pós-verdade do trabalho e, por conseguinte, de André - teve na sua mudança comportamental. Selecionados para apresentarem a Epione a investidores num evento de startups, André e a Vera pós-hipnoterapia - leve, relaxada, solta, dançante, já sem o rosto contraído e contrariado do início - rumam em busca do sucesso que começaram a construir naquela sala de parede vermelha atrás de Vera, para fundo do pitch, e de parede branca atrás de André, para escrever novas histórias, com janela de vista para um prédio de apartamentos em construção.
Uma suave panorâmica acompanha a chegada do carro do casal ao parque de estacionamento do evento, será num edifício de cor castanha com um estilo arquitetónico a remeter para um conjunto de caixas retangulares empilhadas de forma geometricamente rigorosa. Ali dentro, na reunião preliminar de preparação para a mostra final aos investidores, Julian (David Regnfors) - é colega e amigo da mãe de Vera - padroniza e parametriza comportamentos, posturas, modelos, para que encaixem num perfil de atuação em palco, ou no circo - como o próprio diz -, que seja absolutamente eficaz perante os investidores. André com nervos em franja, ansioso; Vera como que alheada daquela realidade; André senta-se na sala vazia das apresentações finais aos investidores; Vera boia na piscina. Em estados mentais diametralmente opostos naquele evento, assim vemos o casal. Num enquadramento sublime, durante uma sessão de preparação baseada em construções com legos, a câmara descobre e foca na mesa oposta, à distância, o rosto aflitivo, ciumento, inseguro, de André a olhar para a mesa onde Julian está sentado com outros candidatos, e, em simultâneo, o rosto de Vera tapado por legos segurados pela boca, pelos olhos e amparados pelas mãos. Determinado a fazer algo em seu proveito, André bajula Julian num drink a dois no canto do bar do hotel e, novamente, num enquadramento de excelência, o plano muda e a câmara estaciona num ponto em que nos permite olhar para Vera a forçar um self-service inusitado de um copo de leite ao balcão, enquanto vemos a estupefação no rosto de Julian. Vera senta-se com os dois e de frente para André vai desmentindo o pitch bajulatório do namorado para Julian. Numa entrevista, Ernst De Geer mencionou ter visto o 'Cenas da Vida Conjugal' (1973), do compatriota Ingmar Bergman, para se inspirar, mas diria que é em Ruben Ostlund, e naquele casal de 'Força Maior' (2014), que pensamos aqui, especialmente nesta cena. A frieza cortante, paulatina, entre sorrisos, sem histeria, com que Vera desmancha André, é feita da mesma acidez do filme de Ostlund - li que De Geer foi aluno dele. E viajamos também mentalmente até outra obra de Ostlund, 'O Quadrado' (2017) - àquela performance artística-primitiva-animalesca a meio de um grande jantar no museu -, na cena quase no final de 'A Hipnose' quando André, talvez em revanche face à saída da norma de Vera ao longo de todo o evento, talvez também ele, como Vera, cansado da sua persona - sempre pronto e determinado a fazer todos os possíveis para ir ao encontro do que os outros esperam dele ou do que ele acredita que os outros esperam, entre pós-verdade, ajuste forçado, mentira, bajulação, plasticidade -, decide fazer de cão num almoço em casa da mãe de Vera, ladrando, andando de gatas, alçando a perna para despejar a urina. Se é para representar, que seja da forma mais disruptiva possível!
E na verdade esta cena acaba por resgatar o filme, a história, a visão do autor. O choque provocado à mãe de Vera e aos seus convivas à mesa, numa casa que por fora a câmara nos mostrou como um bloco de cimento - cinzento, frio, opaco -, enfatiza e confronta-nos brutalmente perante a necessidade e a ânsia, por vezes, de sair das normas sociais impostas, estabelecidas, de uma pressão que amiúde se abate sobre o indivíduo perante a exigência contínua de ajuste, controlo, limagem, fuga ao seu eu.
Hypnosen, de Ernst de Geer (2023)
Visionado em Mubi Portugal
'A Hipnose', de Ernst De Geer (2023)