'Desordem', de Olivier Assayas: sonhos desfeitos em sequência
Em conversa recente no programa 'Disco e Daquilo', na Rádio Movimento, tendo como pano de fundo o livro 'NA VAGA DE ROHMER - Escritos sobre (65) filmes | O Ano Zero', tive a oportunidade de falar sobre o quão fulcral foi o cinema de Éric Rohmer no espoletar de uma vontade, e até necessidade, de escrever sobre filmes, mas também no potenciar de um espectro diferenciado e mais alargado do meu cinema preferencial, de culto, se quisermos. Com os filmes de Rohmer alcancei o auge do cinema da palavra, um verdadeiro elogio da conversa, que, como já escrevi noutras ocasiões, assenta também muito condignamente em Woody Allen; Jean Eustache (apesar dele só ter visto o La Maman et la Putain [1973], por sinal, mais do que suficiente); Hong Sang-soo ou Jonás Trueba, e, precisamente por este estado de amplo preenchimento, de plenitude diria até, pelo cinema-conversa, abriu-se espaço para a minha exploração e fruição do cinema comandado pelas imagens, e pelo som - dos ruídos e da música, não tanto dos diálogos -, também. 'Desordem' (1986) - estreia de Olivier Assayas em longa-metragens, ele que fora crítico nos Chaiers du Cinéma, de 1980 a 1985, com Serge Daney e outros - é precisamente esse tipo de filme que evolui ancorado nas imagens, acompanhadas pela música e pelos ruídos. Os movimentos da câmara, incluindo as suas cirúrgicas e sapientes estagnações, criam, numa espécie de relação de causa e efeito, uma sintonia perfeita com o decurso dos acontecimentos, da vida que anda, que corre, que gira, por vezes em 360 graus, que vai e volta, em sequência, com um certo quê de François Truffaut e do seu filmar. Se o filme-estreia de Assayas fosse mudo, ou se silenciarmos os diálogos, diria que não ganharia ou perderia mais ou menos ordem, seria igualmente 'Desordem'. As conversas, um tanto ou quanto rígidas, em sintonia com a rigidez dos protagonistas, pouco nos dão, sendo abafadas, relegadas ou engolidas pelos atos, por aquilo que vemos, e (muito) como vemos, e por aquilo que ouvimos, especialmente a música: a diegética, da banda de pós-punk que as personagens encarnam, de concertos, dos espaços noturnos, para nos bem entreter ao sabor daquele underground dos anos 80; mas sobretudo a introduzida, a composição original de Gabriel Yared, que está para 'Desordem' como 'Kyrie - Grande Missa', de Mozart, está para 'Fugiu um Condenado à Morte' (1956), de Robert Bresson: a música não surge para dramatizar os momentos que por si só já são dramáticos - antes ou durante -, mas aparece para refletir, transbordar, ecoar, reverberar o estado emocional das personagens quando a olho nu não é naquele(s) momento(s) tão evidente. É também em Bresson que aquela rigidez de guião, em protagonistas e diálogos, parece buscar sentido.
Numa das derradeiras cenas de 'Desordem', Henri (Lucas Belvuax), antigo guitarrista da banda entretanto extinta, ele que já perdera o amigo Yvan (Wadeck Stanczak) - o vocalista dessa banda, que acaba por suicidar-se a meio do filme - e a amada Anne (Ann-Gisel Glass) - no avançar do filme e da temporalidade troca o preto do cabedal pelo amarelo executivo, consequentemente, a fúria da juventude por uma relação amorfa e seguidista com um homem mais velho -, tem uma nova e quiçá derradeira oportunidade de dar sequência ao sonho da música e da juventude num estúdio em Nova Iorque. Essa audição de Henri na guitarra ocorre num longo plano-sequência, de dois minutos e meio, que funciona como metáfora de todo o filme; entramos no estúdio de gravação e a câmara faz uma panorâmica de 360 graus, mostrando-nos o espaço - a cabine onde está o homem que avalia e Henri sentado de guitarra nas mãos e cigarro na boca -, acompanhado pela música de Marc (Philippe Demarle), um amigo da antiga banda, que faz a ponte entre o auditor e Henri no estúdio, após os primeiros acordes, recolhendo e devolvendo feedback, um vaivém sempre acompanhado de panorâmicas que prolongam o caminho entre Henri e quem o ouve, estendendo a agonia dele (Henri), por sinal, voltando a câmara depois a deter-se e a deslizar lentamente pela guitarra que toca, para um novo vaivém sequencial, este definitivo, que exaspera o americano e destroça Henri. É como se ele não conseguisse sair do mesmo sítio, num ciclo de eterno retorno, numa completa estagnação mental e de vida, desde a morte que, juntamente com Yvan e Anne - os três formavam um triângulo de amor e depois de cumplicidade num crime -, se deu às mãos deles, num homicídio que não era para ser, logo no início do filme, num assalto de instrumentos musicais: no plano inaugural, pelo telhado dessa loja, o movimento da câmara encaminha-nos para o letreiro que diz musique, antes de nos meter na cena macabra, para começar a sequência de sonhos desfeitos. Mas há momentos em que a câmara estaciona e enquadra magistralmente, comunicando connosco: quando Yvan e Henry se apercebem que Anne deixou de responder no interior da loja, os dois, lado a lado, no chão a recolherem os instrumentos, de rostos estarrecidos, parecem um só, com a mesma reação, a mesma postura corporal, mas de seguida Yvan move-se, quebrando o plano fixo, em socorro de Anne - o herói que parte em socorro da amada, o herói que Anne depois escolherá em detrimento de Henri -; já depois de fugirem do local do crime, no escuro da noite - o filme todo ele se dá no escuro, seja na noite ou no cinzento sombrio do dia -, a câmara fixa nas costas de Henri, de cócaras, com Yvan e Anne à sua frente, em pé, mas ela de lado, refletindo uma certa hesitação em acompanhar ou não a vontade de Henri em contar à polícia, ao contrário de Yvan. O intercalar da câmara nos rostos de todos os elementos da banda e também de Anne, após o acidente de viação na madrugada ou ao amanhecer - a atmosfera sombria não apresenta destrinças à luz do dia -, é também crucial na propagação dos efeitos, do prolongar da sequência de eventos que se seguirão. A câmara mantém-se sempre fidedigna às emoções interiores dos protagonistas, daí que só a tenhamos visto instável e periclitante perante a reação agitada de Anne ao ver Yvan a beijar outra - depois do crime, depois dela o ter escolhido em detrimento de Henri, viveu ali um abalo profundo -; daí também que procure o melhor enquadramento quando ela está com Henri - a afinidade entre ambos é evidente -, especialmente em dois momentos: um maravilhoso plongée (plano picado) sobre as cabeças de ambos na varanda do barco a caminho de Londres e, mais tarde, à porta da casa de Anne (imagem abaixo), num hesitar entre o abrir novamente ou o fechar outra vez; daí ainda os grandes planos do rosto de Anne quando reencontra Henri após algum tempo, o rosto dela petrificado, assombrado, contraria a ideia de que a sua vida se refez e ganhou um novo rumo.
Voltando à música de thriller, a sonoridade de Gabriel Yared, ela está ausente nos momentos de morte - são dois -, não existe para criar a sensação de que algo de mau vai acontecer ou para chorarmos com ela, e ao som dela, as mortes; aí é o silêncio que comanda. Mas, a música que ouvimos não raras vezes ao longo do filme, entoa para nos lembrar que há uma sombra profunda que paira sobre as personagens, que os capturou e os mantém cativos, que se lhes colou à consciência. É a música ao serviço do filme, ao serviço das emoções deles, dos protagonistas, e não instrumentalizada para nos espoletar emoções a nós, espectadores - cabe-nos procurá-las, senti-las depois dessa procura, sem nos terem sido oferecidas de bandeja.
Experimentemos então ver 'Desordem' sem lermos as legendas; e se não entendermos francês, perfeito. Centremo-nos no resto, ignoremos os diálogos, e aí sim conseguiremos absorver todo o alcance da primeira obra desse pensador-crítico-cineasta que é Olivier Assayas.
Désordre, de Olivier Assayas (1986)
Visionado em Mubi Portugal
'Desordem', de Olivier Assayas (2024)