'Vidas Duplas', de Olivier Assayas: livros e casamentos
Passaram-se mais de 30 anos desde 'Desordem' (1986) - a estreia de Olivier Assayas em longas-metragens -, uma obra de autor, de criador, com uma vincada intenção de cravar um cunho identitário. A preponderância é da câmara: como ela se move, como ela mostra e quer mostrar. Já o som, quer pela música que é introduzida para sinalizar as emoções internas dos protagonistas - quando estas não são tão visíveis a olho nu -, quer pelo som diegético que ecoa dos concertos das bandas de pós-punk, quer pelos ruídos da chuva, das ruas, dos cafés e bares, relega os diálogos para um plano inferior, quase decorativo. Quanto aos protagonistas, vemo-los como peões que se movem - melhor, são movidos - como num jogo de xadrez entre as imagens e o som. Concretamente, são 32 anos que separam 'Desordem' de 'Vidas Duplas' (2018), na vida e no cinema de Assayas. Em 'Vidas Duplas', o autor-criador de 'Desordem' dá lugar ao crítico-pensador, alguém disposto a ceder o seu cinema como palco para o debate e a reflexão sobre a crescente digitalização presente na vida das pessoas, particularmente nos seus hábitos de consumo cultural; os livros e os casamentos acabam por ser o pano de fundo desse palco, talvez porque ambos representem de certo modo a resistência à transformação social acelerada que o advento do digital potenciou. Agora, ao contrário do que vimos em 'Desordem', os diálogos são o epicentro do filme; o único som relevante é aquele que ecoa das conversas; os protagonistas deixaram de ser peões e ganharam rostos amplamente conhecidos do grande público - francês e não só -, de Juliette Binoche a Guillaume Canet, passando por Vincent Macaigne, para melhor amplificarem pensamentos, argumentos, reflexões, mas também estilos e tendências, muito também a partir das suas características particulares na representação. Se os diálogos agora são o epicentro, os protagonistas passam também eles a serem mais relevantes.
A certa altura no filme, fala-se da força que os audiobooks vão ganhando como nova tendência no mercado livreiro e, não fosse a capacidade de Canet e Macaigne em fazer-nos olhar para eles e vermos sem qualquer hesitação o responsável de uma editora profundamente estabelecida e consagrada em Paris, bem como o escritor parisiense que resiste estoicamente à passagem do tempo, poderia muito bem 'Vidas Duplas' ser um audiofilm. Canet é Alain, Macaigne é Léonard; Alain é o editor, com um quê de pedante, snob e arrogante, vive dividido entre o peso da tradição que o livro em papel tão bem simboliza e a urgência da transição digital para não perder competitividade na indústria livreira; Léonard é o escritor, completamente alheio a toda a mutação sociodigital em marcha, embrenhado na sua autoficção, vive para escrever. Depois de editar todos os seus livros até então, Alain decide não publicar o novo romance de Léonard. Mais tarde, Alain diz à mulher, Selena (Juliette Binoche), que tomou essa decisão por não gostar da forma como Léonard retrata a amante na história, especialmente a cena do broche na sala de cinema aquando do visionamento de 'Laço Branco' (2009), de Michael Haneke - na verdade, a personagem retratada é a própria Selena (vive um caso extraconjugal com Léonard) e o filme efetivamente visionado foi um 'Guerra das Estrelas' qualquer (Léonard decidiu incutir o seu registo de autoficção), o que é de si bem menos desrespeitoso para com o cinema. Selena é uma atriz de uma série policial, muito física, na berra, mas o seu entusiasmo está nos antípodas das pessoas que, como a própria diz, vivem em modo de adição. Já Valérie (Nora Hamzawi), mulher de Léonard, com quem está invariavelmente em desacordo - o que demonstra que os opostos se atraem efetivamente, mas que depois têm convivências desafiantes -, é assessora de um político local, esforça-se para salvaguardar a integridade moral do político e combater a pós-verdade e a desinformação, temas que também são debatidos nos jantares entre os amigos intelectuais de Paris.
Nestas vidas duplas, Alain vai estreitando laços com o processo de desmaterialização da escrita, dormindo com a nova (também de idade) responsável digital da editora - representa aqui uma nova geração emergente, incluindo na liberdade afetiva (relaciona-se com homens e mulheres, sem criar vínculo), desenraizamento familiar (solteira, vive a sua vida) e geográfico/espacial (de malas aviadas para nova experiência profissional em Londres). Depois do sexo, substituem os cigarros pelo debate entre algoritmos, títulos virais e palavras-chave, de um lado, e críticos de literatura, do outro - críticos que não passam de intermediários subjetivos para ela, nada que os algoritmos não possam substituir e com ganhos. Alain recorre a 'Luz de Inverno' (1963), de Ingmar Bergman, que a revolucionária digital ainda não conhece, para agarrar-se a uma réstia de fé, fé nos livros físicos, mesmo que o seu futuro possa vir a assemelhar-se ao da Igreja quase vazia do padre Tomas, sem comungantes - na verdade, a cassete, o vinil, o CD e o DVD sucumbiram, enquanto o livro vive e resiste, tal como o casamento, com mais divórcios pelo meio, e diria que com maior equilíbrio agora no que toca a traições.
É com vista para o mar, por entre o bosque, que o debate cessa no filme - continuará na vida real, muitas vezes com conversas bem semelhantes àquelas que fomos presenciando em 'Vidas Duplas' -, já os livros e os casamentos, em velhos e novos formatos, ganham vida e resistem quiçá felizes para sempre.
Doubles Vies, de Olivier Assayas (2018)
Visionado em Filmin Portugal
'Vidas Duplas', de Olivier Assayas (2018)