DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 29 de novembro de 2024

'Domingo', de Fellipe Barbosa e Clara Linhart: imagens que pintam um quadro


Encontros de famílias numerosas, incluindo amigos, numa casa de campo grande, para convívio e celebração em volta de uma mesa, são sempre prometedores: na vida como no cinema. Quanto ao cinema, esperamos sempre que nos sirvam um cocktail trágico-cómico, com aromas de insanidade, fricção, luxúria, tensão, música, gargalhada, choro, grito, brincadeira. 'A Festa' (1998), de Thomas Vinterberg; 'O Pântano' (2001), de Lucrecia Martel  - ambos já passaram por aqui em outras DA VAGA REALIZADOR DO MÊS - ; 'O Verão do Skylab' (2011), de Julie Delpy 'Festa de Família' (2019), de Cédric Kahn,  todos eles nos servem esse drink, com maior ou menor intensidade. Recuperando a lente que usara em 'Casa Grande' (2014)  - longa-metragem de estreia -, que foca e mostra uma família brasileira de classe alta, ainda que em declínio, Fellipe Barbosa (em correalização com Clara Linhart)  apura, amadurece e refina a sua estética em 'Domingo' (2018),  fazendo da câmara o pincel com que pinta este quadro de família. É especialmente para Lucrecia Martel que 'Domingo' nos leva, por certas semelhanças narrativas com 'O Pântano', incluindo as figuras dos protagonistas, mas também pelos enquadramentos, posicionando a câmara no sítio certo, fazendo com que as imagens falem, fazendo com que num só plano consigamos observar, deduzir e imaginar muitas coisas - fazendo uso de toda a profundidade de campo, a câmara em 'Domingo' concede muitas vezes horizonte, amplitude, imensidão ao quadro, é o desafogo da família na casa-quinta -, e ainda pelo sentido e utilização do som, o som no cinema que tão caro é a Martel, pelo modo profético, quase divino, com que vamos ouvindo, pela televisão, passagens do discurso de tomada de posse de Lula da Silva como Presidente da República, a 01 de Janeiro de 2003 (o seu primeiro mandato), a fazer lembrar o som das reportagens também televisivas sobre o avistamento da Virgem na Argentina que era disseminado pelos quartos de 'O Pântano'.


A cerca com as ovelhas na casa-quinta da família - plano inaugural, ao som do bolero Solamente Una Vez, que atravessará todo o filme, como que o hino da família, especialmente da matriarca Laura (Ittala Nandi)  - e o sacrifício do cordeiro, ou da ovelha neste caso, às mãos do pastor-caseiro que empunha a faca, remete-nos para o Antigo Testamento, para a ideia do cordeiro de Deus sacrificado para remissão dos pecados. Não, a família não está de todo imbuída nessa espiritualidade ou em qualquer tentativa de expiação de pecados, mas sim em trazer a carne para a grelha, para o churrasco de ano novo. Mais à frente, quando começamos a ouvir o discurso de Lula, que ecoa na pequena televisão no quarto da empregada (e da filha), voltamos a pensar no texto bíblico, mas agora no Novo Testamento  - e muitas vezes ouvi eu na missa quando era uma criança 'devota' o "Eis o Cordeiro de Deus, Aquele que tira o pecado do mundo" -, sentindo o reverberar das palavras de Lula como algo messiânico, profético, não no domínio da religião, obviamente, mas sim na fé (não religiosa, repito), crença, esperança num Brasil diferente, mais igualitário, mais justo, que a empregada ouve enquanto passa a roupa a ferro, por entre as gargalhadas nos corredores da fervilhante Bete (Camila Morgado) e do cunhado Miguel (Ismael Caneppele), o pintor desacreditado pela matriarca, a exalarem toda a euforia dos riscos, de coca(ína) claro.


E por falar em Antigo e Novo Testamento, substituamos os 10 mandamentos por 10 enquadramentos neste (e deste) 'Domingo'. Primeiro enquadramento: a primeira aparição de protagonistas, excetuando o velho caseiro, dá-se com os corpos nas espreguiçadeiras - cá está, a fazer lembrar aquela abertura de cinema puro e total que Martel nos dá em 'O Pântano' -, corpos inertes na preguiça a olharem para o céu que nos faz ouvir a passagem de um avião; a câmara enquadra os rostos-corpos de perfil, à frente dos olhos deles está o grande lago, com rampa para mergulhos a que os adolescentes conferem razão de ser. Segundo enquadramento: a ovelha (ou o cordeiro) já sacrificada, pendurada de cabeça para baixo na sombra de uma grande árvore, às mãos do caseiro que amanha a carne, rodeado pelos dois adolescentes dos mergulhos, desnudados como o animal, a quem a lã já foi extraída e que seca num grande galho; é à distância, longe, que assistimos, fazendo-nos percecionar a amplitude, o espaço tamanho que separa a casa da árvore-guindaste. Terceiro enquadramento: foco no rosto de Miguel, em grande plano, permitindo-nos ainda assim ver os restantes à volta na preparação do churrasco, fundindo um plano de rosto com um plano de conjunto, isto enquanto vamos ouvindo Laura a debater com a nora Bete o (não) futuro de Miguel enquanto pintor, ele que vive castrado e manietado pela empertigada mãe, tendo voltado ao trabalho de escritório da empresa de carnes da família. Quarto enquadramento: finalmente sentados à mesa, ainda que nem todos, e já bem bebidos, a câmara senta-se numa ponta da mesa, onde esfria o pujante pernil da ovelha já assado, e num único plano conseguimos observar a tensão corporal entre o neto de Laura e a filha da empregada - é assediada sexualmente por ele com frequência -, a conversa inócua da matriarca, já depois de alguns copos de Jameson, com o outro filho, Nestor (Augusto Madeira), e com a neta adolescente, e, ainda, contemplar a harmonia cromática do verde das janelas com as árvores em volta num corredor ao longo da fachada exterior da casa, cujo fim não vemos. Quinto enquadramento: em contraste, saltamos para o interior e vemos a empregada, a filha e o caseiro acotovelarem-se numa minúscula mesa quadrada, encostada a uma parede, onde mal cabem três pratos, enquanto o velho pergunta à empregada se, tal como o jovem professor de ténis de Bete, também ela votou no Lula (que ele tem como um comunista que fala português incorreto): "o voto é secreto", responde-lhe. Sexto enquadramento: dopada com whiskey e cocaína, Bete larga os convivas e salta para aula de ténis, antes de saltar para o professor; num plano geral, a partir das costas de Bete, vemos todo o court e de frente a sumptuosa casa amarela, mesmo ali ao lado - é jogar ténis sem sair de casa. Sétimo enquadramento: através do vidro da porta que dá para o exterior espreitam-se coisas, e o enteado vê a atiradiça Bete a roubar um beijo ao professor - ela que também beija o cunhado -, o vidro a servir de filtro transparente para uma realidade não tão escondida. Oitavo enquadramento: a neta adolescente de Laura convida a filha da empregada, também adolescente, a experimentar o vestido que a avó lhe trouxe para usar na gala-aniversário de 15 anos; quando a câmara larga o corpo perfeitamente ajustado na requintada vestimenta e salta para o rosto da menina rica vemos toda a sua expressão de inveja e repúdio por no corpo dela própria não assentar tão maravilhosamente bem. Nono enquadramento: já depois do almoço, neste domingo de ano novo, a família refugia-se no interior da casa, em volta da árvore de natal, alguns de roupão após a típica chuva tropical que caiu, e Laura, sentada no sofá, aciona a báscula da mesa mini bar para servir mais um drink sem ter de se levantar. Décimo enquadramento: como que perdida nos corredores da casa, Laura vai dar ao quarto (agora vazio) da empregada, onde Lula continua o seu longo discurso de tomada de posse; Laura fixa os olhos na TV e nós só podemos fixar os olhos no rosto dela, focado, que parece transitar da desconfiança até ao embevecimento, após a oratória do petista, levando ao cruzar de mãos, como quem anui ao profeta, ao messias.


Sempre ao som de Solamente una Vez - nem que seja à capela -, a dança inicial do pastor no encalce da ovelha a sacrificar dá lugar, no fim, à dança do baile em registo de gala - há sempre uma ligação entre o início e o fim dos filmes de Fellipe Barbosa -, a vida continua em celebração na casa de campo, mesmo que a sua cancela se abra no lusco-fusco da madrugada para outros seguirem mandamentos de um novo profeta.


'Domingo', de Fellipe Barbosa e Clara Linhart (2018)

Visionado em Filmin Portugal

'Domingo', de Fellipe Barbosa e Clara Linhart (2018)

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