'Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo', de Radu Jude: quanto custa um lugar no cemitério?
Calin Georgescu - esperemos não ouvir falar demasiado deste nome num futuro próximo. Seria bom que pudesse esfumar-se ao mesmo ritmo que uma story nas redes dos sociais passa à história (permitam-me a redundância). Mas, para nosso infortúnio, as stories dessas plataformas pululam vezes sem conta, forçando a própria História a repetir-se, uma vez mais. Calin Georgescu foi o candidato mais votado na primeira volta das presidenciais da Roménia, há pouco mais de uma semana. Expulso pelo seu partido de extrema-direita, aparentemente por ser demasiado extremista, Georgescu fez do TikTok a sua caravana de campanha e, para espanto de muitos, derrotou os dois candidatos apoiados pelos principais partidos, a líder do partido liberal (centro-direita) e o líder do partido social-democrata (centro-esquerda), atual primeiro-ministro, por esta ordem. Entretanto abriu-se uma investigação para (tentar) averiguar a influência da rede social chinesa na vitória surpreendente do candidato ultra, ultra em nacionalismo, em populismo, em conservadorismo, em negacionismo (Covid-19 e guerra na Ucrânia); pró-putinista e antieuropeísta. Terá o algoritmo beneficiado propositadamente este candidato, alavancando e destacando as suas publicações? Ou terá sido apenas e só o algoritmo a responder à força e vontade do povo? A pessoa mais indicada para dar essa reposta creio que seria mesmo Elon Musk, mas ele só pode falar pelo X (antigo Twitter), claro. Seja como for, o tribunal constitucional romeno já validou os resultados e agora que venha a segunda volta entre o 'Messias do TikTok', assim é conhecido por estes dias, e a candidata liberal. Será caso para dizer que os romenos, e a União Europeia por arrasto, não devem esperar demasiado dessa eleição. Para melhor entendermos como a Roménia aqui chegou, Radu Jude, em 'Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo'(2023), apresenta, explora e mescla três dimensões: a Bucareste pré-cortina de ferro pelas mãos de Angela ao volante, a taxista no filme Angela merge mai departe (1981) [Ângela segue em frente], de Lucian Bratu; a Bucareste dos dias de hoje, pelas mãos de uma outra Angela no guiador, uma assistente de produção; e a pós-verdade em duplo, numa relação de causa e efeito que entronca com o início deste escrito, encarnada por Bobita (persona que Angela criou para fazer paródia nas stories do TikTok), por um lado, e levada a cabo por uma multinacional austríaca que opera na Roménia - empenhada em vender uma imagem protetora dos seus trabalhadores romenos -, por outro.
Ao colocar a Angela do filme dos anos 80 em alternância com a sua Angela (Ilinca Manolache), do agora, Jude guia-nos numa viagem - quase literalmente porque passamos muito do tempo com ambas, de cada vez, dentro do carro - em paralelo, nas tais duas das três dimensões, separadas pelo tempo, e quanto isso pesa na verdade, ou talvez não tenha pesado assim tanto: a saída do jugo soviético e a entrada na utopia adiada do sonho americano-ocidental; um salto do comunismo e do protecionismo para o capitalismo e o liberalismo, que, nas palavras da relativista Angela, uma conformada inconformista, mantém "a Roménia como uma cona pronta a ser fodida". Jude contrasta a cor de Angela merge mai departe com o preto e branco no seu filme, cedendo apenas lugar às cores quando 'Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo' transita para a terceira dimensão, da pós-verdade: quando Angela passa a Bobita e liga o TikTok para discorrer as suas javardices obscenas, carregadas de testosterona machista, preconceituosas, de descredibilização das instituições, de radicalismo, de putinismo; e quando começa o longo e derradeiro plano do filme - a câmara estaciona durante mais de meia-hora - que enquadra o antigo trabalhador da empresa austríaca, com a mãe, a mulher e a filha, a gravar o anúncio sobre segurança no trabalho, sendo que o próprio sofreu um acidente laboral que o deixou paraplégico, pelo que a imagem acaba por valer mais do que todas e quaisquer palavras, pois, no fim, o que ele (não) disse será escrito por outros nas cartolinas vazias que ele empunha. Ou seja, a cor é entregue à primeira dimensão, da Bucareste pré-muro de Berlim que sonha com algo que há de vir, e à terceira dimensão, aquela que aliena uns quantos, que são demasiados, enquanto outros, que são poucos, concretizam os seus sonhos molhados - na noite em que Musk e Trump festejavam a vitória nas eleições americanas, Wall Street preparava-se já para na manhã seguinte reagir com subidas a pique e máximos históricos. Para a Bucareste de agora, onde a assistente de produção Angela parece passar mais tempo no carro do que a taxista Angela, resta o preto e branco e não esperar demasiado deste fim do mundo, em que os carros digladiam-se nas ruas, na estrada, em engarrafamentos intermináveis, buzinadelas, insultos e impropérios, poluindo mais do que nunca uma cidade que já sofre dos fumos do lixo queimado - culpa dos ciganos, acredita a mãe de Angela, ciganos que são menosprezados e servem de bode expiatório, lá como cá, mas a filha retorque esclarecendo a mãe que é o lixo de toda a Europa que é ali incendiado.
Apesar da cor, da calmaria na cidade - Jude intensifica ao introduzir slow motion em algumas imagens -, do autocarro e do elétrico que recolhem e largam passageiros, em perfeita coabitação com os poucos carros que circulam, do peixe fresco frito que a Angela taxista come em cima do pão, com a espinha a parecer uma harmónica, da vida de rua com pessoas, que vemos nos excertos de Angela merge mai departe, não se trata porém de uma apologia do modo de vida pré-queda do muro, pois não são excluídas as abordagens machistas e misóginas da altura, bem como a violência física que a mulher sofre do homem, vividas pela protagonista Angela (a taxista); é, acima de tudo, a demonstração de que o que podia e deveria efetivamente melhorar não acontece(u): a Angela assistente de produção continua a ser alvo de insultos machistas e misóginos no trânsito e também de abordagem a roçar o assédio, seja pelo homem pobre de uma das casas dos trabalhadores que ela visita para recolha de testemunhos para o anúncio da empresa austríaca, quer pelo homem rico na sua torre de marfim, um escritório num arranha-céus, que gere construções de condomínios de luxo. E, de facto, na Bucareste de hoje, que 'Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo' nos mostra, parece não haver lugar para transportes públicos, só vemos uma linha de caminho de ferro abandonada, quase tapada pela erva; parece não ter pessoas a pé nas ruas, só conseguimos ver carros, quase como se fosse uma pista de carrinhos de choque, seja pela câmara lateral a partir do lugar do pendura, a apontar para o rosto de Angela, seja com a câmara no banco de trás em travelling para a frente; o peixe foi substituído pelo Kebab que a globalização trouxe e que Angela engole enquanto faz mais uma story para o TikTok, para depois voltar ao inferno do trânsito. A paisagem urbana também ela mudou drasticamente, tendo agora nos outdoors publicitários os mais variados estímulos, até no cemitério, de fora e de dentro. Também os lugares do cemitério estão à venda; também em compras e vendas se pensa dentro dos cemitérios, com exceção dos defuntos, claro. Na fachada branca exterior lemos em letras garrafais, a negro, o endereço eletrónico www..,(do cemitério), já lá dentro, enquanto Angela e a mãe rezam junto à campa da avó (de Angela), num sublime enquadramento, conseguimos ver um grande outdoor por cima delas, como que a sobrevoar o cemitério, isto num plano fixo, a anunciar vendas de armazéns de 500m2, isto enquanto toca o telefone de Angela e do outro lado está alguém a tentar vender um seguro. Genial, Radu Jude! No último Doclisboa, em Eight Postcards From Utopia (2024), pude testemunhar a exploração que o cineasta romeno faz da publicidade enquanto meio sociológico refletor da sociedade romena.
E quanto custa um lugar no cemitério? O cadáver da avó de Angela vai ter de ser exumado e trasladado para outro cemitério, pois aquele onde jaz o corpo vai dar lugar a um condomínio de luxo, que o homem da torre de marfim mostra numa maqueta a Angela. Não há problema, diz ele, a empresa suportará os custos de um novo funeral, com um sacerdote a preceito, oferecendo ainda o pagamento de uma subscrição de 10 anos de 'alojamento' do corpo no novo cemitério. Assim manda o capital, não o de Karl Marx cujo livro parecido na mesa de reuniões serve para fazer piadas com o tempo que já lá vai. E depois há aqueles que simbolicamente nem precisam de cemitério, aqueles que morrem na estrada. Num autêntico ver para crer, Jude obriga-nos a olhar para o desfilar de mais de 130 cruzes (contei eu, de acordo com Angela são 600) colocadas ao longo de uma estrada de morte, durante minutos que parecem ser intermináveis e que suplicamos para que passem depressa, mais ainda do que os carros que circulam naquela malfadada estrada; um fado que tem origem na escassez de investimento público para melhorar ou construir novas vias; um fado que emana como consequência de uma sociedade fracassada, em colapso, com falta de civismo - a certa altura Angela, numa outra casa de uma trabalhadora num bairro degradado, diz-lhe que as pessoas civilizadas também mandam lixo para o chão, tal como por ali -, onde a corrupção é endémica, como bem vimos em 'O Exame' (2016) - já abordado em outra DA VAGA DE CASA -, do outro mestre romeno, Cristian Mungiu. Recuperemos a pergunta: E quanto custa um lugar no cemitério?
Do Not Expect Too Much from the End of the World, de Radu Jude (2023)
Visionado em Filmin Portugal
'Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo', de Radu Jude (2023)