DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 10 de janeiro de 2024

'Eden', de Mia Hansen-Løve: entre a euforia e a melancolia


Nos meus tempos de universitário em Braga, no início do século, acompanhei de perto a(s) experiência(s) de querer e ser DJ (disc jockey), quer com o meu colega de casa à altura, quer com uma boa amiga - ironia do destino, já em Lisboa, uns anos mais parte, viria a partilhar casa novamente com um DJ (uma espécie de íman), mas este já dividia essa paixão e modo de vida com outra carreira profissional, de professor, mais estável, se assim se pode dizer. Por esta altura em Braga, há mais de 20 anos, a house music (originária de Chicago nos anos 80 e que se difundiu por essa Europa fora) era a nova tendência de dance music, a disco moderna, que arrebatava as pistas em bares, discotecas e festas. Assisti muitas vezes ao processo criativo dos meus amigos DJ's - a escolha dos sons, a sua mistura, o testar, o experimentar, o partilhar, o voltar atrás para chegar à frente - invariavelmente envoltos por uma névoa de fumos, mas confesso que sempre me seduziu mais o produto final do árduo trabalho, do processo: a pista de dança com todo o êxtase potenciado naqueles rostos e corpos e, consequentemente, a glória, a conquista de quem está atrás da mesa de mistura de som (com todos aqueles botões que nunca percebi como funcionavam), de auscultadores encostados ao ombro, e de braço, mais ou menos vezes, a erguer-se para empolgar o público; naquele momento sentia que o meu amigo e a minha amiga eram um Deus e uma Deusa, respetivamente, da música, da dança e da felicidade. Inspirado na saga real do seu irmão Sven, enquanto DJ, Mia Hansen-Løve (a escolha DA VAGA REALIZADOR DO MÊS) com 'Éden' (2014) faz-nos viajar por uma régua do tempo, entre 1992 e 2013, acompanhando Paul (Félix de Givry), e a(s) experiência(s) de querer e ser DJ, tendo os Daft Punk (a dupla-estrela da música eletrónica francesa, surgida nos anos 90, que se tornou num sucesso mundial, e que em 2021 anunciou o seu adeus) como uma espécie de pano de fundo em paralelo.

Seduzido pelo garage (estilo de música eletrónica, dance music, desenvolvido em paralelo com a house, em Chicago), o ainda bem jovem Paul impressiona-se ao perceber que aquele género - que ele define como mistura do frio das máquinas com o calor da voz, da eletrónica com o soul - começa a ouvir-se nas raves escuras, de luzes psicadélicas nos túneis de acesso, algures no meio da floresta, onde o ecstasy é a droga-mãe; na pista, Paul só tem olhos para os DJ's; cá fora, as tripes vão tomando conta dele. É sob o girar do disco de vinil que se dá o primeiro salto no tempo, de 92 para 95, Paul e os amigos - Cyril (Roman Kolinka), o melhor amigo, sorumbático, do contra, com queda para o desenho; Stan (Hugo Conzelmann), o seu colega de dupla, de DJ's, tal como os Daft Punk, sóbrio e dedicado, entre outros - andam às voltas para lançarem os Cheers, o duo de garage, com Paul e Stan, na noite de Paris, e para tal contribuirá também o hipocondríaco Arnaud [o sempre brilhante e cómico Vincent Macaigne, na retina as suas interpretações em 'Festa de Família' (2019), de Cédric Kahn, em 'Vidas Duplas' (2018), de Olivier Assayas, ou em 'Os Dois Amigos' (2015), de Louis Garrel] e os seus contactos naquele mundo.



Com os Daft Punk (representados pelos atores Vincent Lacoste e Arnaud Azoulay) a darem os primeiros passos e a abrirem alas para uma disco moderna, uma nova vaga na música eletrónica francesa, os Cheers vão também, ao seu ritmo, crescendo e enchendo a pista de dança do King (espaço noturno onde se tornam DJ'S residentes). A câmara cola-se aos corpos na pista e move-se ao ritmo das danças, não há limites ao seu movimento, é mais um corpo dançante, e, desta forma, consegue mais do que nos mostrar a adrenalina, a felicidade vivida, faz-nos sentir aquela vibração, contagia, põe-nos também a dançar, mentalmente, e com muita vontade de o fazer também no plano físico; bom, resta-nos abanar a cabeça q.b., bater o pé ou a mão para libertar aquela energia, one more time...E fora das pistas de dança, Mia Hansen-Løve opta, nesta fase do filme, de euforia, por manter a câmara irrequieta e inquieta, quase invariavelmente, e vai mudando de planos freneticamente, em plena harmonia com os movimentos de Paul e dos amigos, uma agitação quase constante.


Com o crescimento dos Cheers, cresce também a euforia. A cocaína é agora a droga de Paul, da namorada mais duradoura, Louise (Pauline Étienne), e de grande parte dos amigos; "vai com calma, Senhor Rowenta (aludindo à marca de aspiradores) ", diz-lhe Arnaud, a certa altura, enquanto Paul 'aspira' mais um risco, deixando o rigoroso e compenetrado Stan sozinho a segurar as pontas atrás da mesa de som. Com o passar do tempo, Paul vai encaixando sucessivos murros no estômago: a despedida por carta da namorada norte-americana, Julia (a agora notabilíssima Greta Gerwig) - que depois visita em Nova Iorque aquando de uma mini-digressão norte-americana dos Cheers, também por Chicago claro; uma outra carta de despedida, desta feita da sua orientadora de tese na Universidade; o suicídio do melhor amigo Cyril; o abandono/partida de outra namorada, Louise; o aborto que mais tarde lhe é confessado; a forma como é usado e vulgarizado por outra namorada, durante três anos, Margot, uma coquette, uma bourgeoisie, que esbanja em garrafas de champanhe mais ou menos o que Paul gasta em coca, e as dívidas acumulam-se, pois no fim é Paul quem paga o preço, também literalmente.


Paul segue o seu caminho, num amor incondicional à sua arte de fazer e tocar música, o seu propósito de vida, o amor ao garage, "delicado e enérgico, entre a euforia e a melancolia", diz ele. Paul é romântico, é sensível, é apaixonado, é idealista, é resistente. E o tempo, com o avançar inevitável na sua régua, dar-lhe-á também um murro no estômago; ao fim de 12 anos de Cheers, o gerente do espaço onde são residentes alerta-os para a necessidade de evoluírem no seu estilo, porque as pessoas mudam, as tendências são tendências. Paul e Stan engolem em seco e em silêncio; a curva descendente acabara de começar. Ao contrário de Paul, Stan constituiu família, e agora, já com a câmara mais lenta, Mia mostra-nos o seu filho ao colo da mãe, na passagem de ano de 2009, enquanto Paul segue na sua deriva, riscando e arriscando, agora na companhia de Yasmin (a conceituada atriz iraniana, Golshifteh Farahani).


O fim do sonho, do ideal, daquela vida, está a chegar para Paul, e a câmara de Mia desloca-nos lentamente o olhar, de baixo para cima, até ao céu, para vermos o cruzar de duas linhas deixadas pela passagem dos aviões. É uma cruz que mata o passado e sinaliza o necessário e inevitável começo de um futuro. Mais tarde, já em 2013, quase no final, Mia reserva-nos o momento mais impactante do filme, condensando num só plano toda a sua arte de bem filmar, toda a sua delicadeza, toda a nostalgia e toda a melancolia de Paul: num regresso sóbrio à noite, a um bar, seleto, calmo, onde acaba por rever amigos, Paul isola-se e fixa, como sempre, o olhar na pessoa que põe a música, desta feita, uma rapariga que faz uso apenas de um Mac (Apple); a câmara parte do rosto de Paul para uma demorada panorâmica, numa quase ausência de profundidade de campo, com a iluminação difusa no escuro, até chegar e estacionar na rapariga e no Mac. Genial! Depois disto o filme poderia muito bem acabar ali e nem precisaria do livro de poesia The End.


Eden, de Mia Hansen-Løve (2014)

Visionado em Filmin Portugal

'Eden' (2014) de Mia Hansen-Løve

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