'A Rapariga e a Aranha', de Ramon & Silvan Zürcher: uma teia emaranhada
O evento ou processo de mudança de uma casa para outra é sempre uma experiência individual e coletiva, de memórias e de expectativas, simultaneamente. O planeamento e a organização da logística, os profissionais contratados para a mudança, a ajuda de familiares e de amigos, as conversas de mais ou de menos circunstância, a maior ou menor sintonia entre as diferentes pessoas que, à partida, ali estão todas em prol do processo (a mudança), as lembranças potenciadas por objetos, as projeções feitas a partir dos mesmos, o vaivém de pensamentos entre passado e futuro, a viagem que chega ao seu destino, e a nova viagem que começará; a casa como barco, como um cruzeiro, os moradores como viajantes, a vida como viagem e conjunto de viagens. É o hit francês, a canção Voyage, Voyage (Desireless, 1986) - numa clara sensação de déjà vu, ou déjà écouté, porque recentemente vi 'Compartimento N.º 6' (2021), de Juho Kuosmanen, e esta era também a canção-filme - quase de início ao fim, a reverberar pelas duas casas do processo, em sons emitidos pelas gargantas sem voz, no som que emana das mãos que tocam o piano da casa, ou no som da voz original que anima a festa de despedida, assim é, assim vemos, assim ouvimos em 'A Rapariga e a Aranha' (2021), de Ramon & Silvan Zürcher, os irmãos (germânicos), na sua segunda longa-metragem.
De um plano (inaugural) com a planta de uma casa no ecrã do computador, sonorizado com o ruído da impressora, saltamos para o martelo pneumático que perfura o chão da rua, acompanhado pelo ruído da broca; só depois surge o olhar azul, fixo, penetrantemente perdido, de Mara (Henriette Confurius), ela que está a ver partir, da casa onde permanecerá, os seus dois colegas de partilha (de casa): Lisa (Liliane Amuat) e Markus (Ivan Georgiev). O salto do monitor para o martelo, do papel para a broca, da planta da casa para a vida da casa, traz perfurações, abre fissuras, inevitavelmente, e cortes, no dedo de Mara e no herpes que lhe sangra o lábio, fruto de ligações que começam, vivem e findam. O processo de mudança começa (no filme) na nova casa e aí vemos Mara como corpo presente e ausente, ao mesmo tempo, presente no espaço e no tempo que Lisa - com quem mantém uma relação marcadamente de sedução e desejo, mútuos, aparentemente de amantes que foram e que já não são, mas que não sabemos porque não nos é contado - escolheu para efetivar o distanciamento em relação a Mara; e ausente no processo enquanto atividade prática, de tarefas a fazer, Mara deambula pela casa, sente, pelo tato, os locais e os objetos, flerta e deixa-se flertar com e pelos seus olhos azuis: Lisa, a mãe de Lisa, Astrid (Ursina Lardi), Jan (Flurin Giger), filho do faz-tudo Jurek (André Hennicke), a nova vizinha de Lisa, com, e por, todos eles.
Fazendo uso integral (sem nenhuma exceção) de câmara fixa, de certo modo em antítese a todo o movimento das várias pessoas que andam pela(s) casa(s), os irmãos Zürcher estacionam no rosto de Mara, e nos seus olhos azuis, mais vezes e mais tempo do que nos restantes, focando aquele indecifrável concentrado de sensualidade, vontade de seduzir e de ser seduzida, vulnerabilidade, alheamento, imprevisibilidade, insanidade mais ou menos controlada. O seu rosto assente na sua camisola cinzenta enquadra-se na perfeição naquelas paredes, também elas cinzentas, vazias, por preencher, despidas de evidências e de certezas. Já Lisa contrasta de Mara, enérgica, ativa, prática, veste amarelo, talvez para irradiar a luz na nova casa. "O amarelo é a cor do ciúme e da loucura", ouvimos depois alguém dizer. E depois disso o amarelo da camisola de Lisa alastra-se para o sofá que chega, para o x-ato que a vizinha empresta, e prolonga-se na casa que Lisa agora está a deixar e que continuará a ser a (casa) de Mara: o amarelo nas cortinas, o amarelo nas paredes, o amarelo na saia da vizinha (esta, da casa antiga) que veste no corredor em andamento enquanto se desloca para abrir a porta e que, depois, traz uma pá de vassoura também ela amarela. E entre as duas casas, em dois dias, mediados por uma festa de despedida na casa de Mara vamos observando loucura em comportamentos dela (Mara), e muito(s) ciúme(s) por entre múltiplos flirts, alguns consumados no plano físico: além dos flirts já mencionados de Mara, aos quais ainda se soma a rapariga que arruma as prateleiras na farmácia, no campo de visão da janela de casa; assistimos também aos flirts de Jan com a vizinha da casa de Mara, e com a colega da vizinha, e destas duas últimas com ele; de Astrid com Jusek e ao contrário; de Markus com a vizinha e vice-versa.
Se nos planos com diálogos a dois, a câmara, preferencialmente, escolhe e mostra-nos apenas o rosto de um deles, deixando-nos a ver a nuca do outro - o que nos coloca sempre mais dúvidas e incertezas, promovendo mais a nossa imaginação do que a constatação ou a interpretação -, quando os pares passam a três ou mais, vemos, por vezes, os protagonistas surgirem diante da câmara a formarem triângulos ou uma linha que se estende, em sequência. O plano mais delicioso mostra-nos Mara e Jan, de frente um para o outro, criando uma linha (a base de um triângulo), entretanto chega a vizinha que 'desenha' o vértice e, a seguir, aparece atrás dela, na mesma linha, em sequência, Lisa, como que estendendo o vértice daquele triângulo até ela. Pura geometria visual que nos é dada!
Com o avançar do filme, a teia de aranha - a certa altura Mara e Lisa partilham o mover de uma aranha nas suas mãos e libertam-na numa parede - vai-se emaranhando cada vez mais, onde crianças a fazerem travessuras, cães a ladrar e gatos que se perdem, adensam a confusão. Só o fim do processo (a mudança de casa) pode significar o fim da teia, o fim de viagem para aqueles passageiros.
Das Mädchen und die Spinne, de Ramon & Silvan Zürcher (2021)
Visionado em Filmin Portugal
'A Rapariga e a Aranha', de Ramon & Silvan Zürcher (2021)