DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Stéphane Pires • 16 de janeiro de 2024

'O Que Está Por Vir', de  Mia Hansen-Løve: a verdade da passagem do tempo


"Mozart, Proust ou Van Gogh: o tempo decidiu. Na arte, também há uma verdade, mas é estabelecida pelo tempo", explica a professora de filosofia Nathalie (a 'catedrática' Isabelle Huppert) aos seus alunos do secundário, num debate-aula no parque/jardim, em 'O Que Está por Vir' (2016), de Mia Hansen-Løve. Nathalie refere-se à consagração e reconhecimento universais do génio daqueles artistas em domínios como a música, a literatura e a pintura, tendo no tempo, e na sua passagem, o critério decisório final. Nas vidas das pessoas e dos protagonistas dos filmes de Mia Hansen-Løve também assim é; é o tempo e a sua passagem que vai estabelecendo a verdade, ou novas verdades que passam a ser a verdade. As pessoas, os lugares, as ideias e os ideais vivem, mas também morrem, e outros nascem; estagnam, envelhecem, mas também renovam, afastam-se e às vezes reencontram-se: a vida também pode ser longa demais, não necessariamente no tempo quantificado, mas sim no tempo vivido enquanto somatório de experiências, de novas vidas dentro da única vida que temos. Mia é exímia, talvez a melhor de todos, a trabalhar a passagem do tempo - seguindo por vezes uma espécie de régua que usa para balizar a evolução do mesmo ao longo da história - nos protagonistas, abdicando de ruturas abruptas, preferindo privilegiar uma certa linearidade que se vai ajustando às circunstâncias que o tempo vai trazendo e mudando, com maior ou menor resistência, com mais ou menos dor.

Apesar da diferença de idades entre ambos - especialmente no início das histórias, em que ele é um jovem a chegar à maioridade e ela já é casada e mãe de duas crianças - o Paul de 'Éden' (2014) e a Nathalie em 'O Que Está por Vir' partilham enormes semelhanças no apego que têm aos respetivos ideais de vida, vivendo ambos, de modos diferentes, as consequências dessa tamanha e dedicada entrega. Paul, de 'Éden', vive para a música, vive para ser DJ, e absorve-se no estilo de vida que mais se coaduna, parecendo faltar-lhe tempo e espaço emocional na ligação com as pessoas, sendo por vezes, consequentemente, descartado por elas; já Nathalie dedica-se convictamente à arte de ensinar os alunos a pensar, através da filosofia, e complementa-se intelectualmente com a escrita e a publicação de ensaios e coleções. Os filhos parecem emanar carência afetiva por parte da mãe, Nathalie, e exprimem até o ciúme perante Fabien (Roman Kolinka), o ex-aluno e protegido de Nathalie, um anarquista intelectual ou intelectual anarquista que também escreve ensaios filosóficos. Não terá sido à toa que Mia abre o filme com Nathalie a ler e corrigir trabalhos de filosofia no interior de um barco, enquanto os filhos e o marido Heinz (André Marcon) - bate no vidro para chamar por ela - estão no exterior do mesmo a contemplar o mar da Bretanha. Ainda neste começar de história, antes do primeiro salto no tempo, vemos o túmulo do escritor e político François René de Chateaubriand, virado para o mar de Saint-Malo (essa localidade portuária na Bretanha que conhecemos dos filmes de Rohmer), com um plano final de Heinz, sozinho e de frente para a cruz: é o anunciar de uma morte que virá, ou de mortes, melhor dizendo, todas elas naturais, fruto(s) da passagem do tempo: do casamento, e da já idosa mãe de Nathalie.


Tal como o Paul de 'Éden', Nathalie sofre com o evoluir das tendências que a passagem do tempo traz. Os seus escritos parecem ser cada vez menos apelativos aos olhos de uma nova geração de editores (que agora decidem na velha editora de sempre) que quer responder às vontades dos leitores, às novas tendências, de uma forma mais agressiva, para inverter a queda de vendas, mexendo no layout da capa, substituindo uma certa austeridade e solenidade por uma imagem berrante, que atraia pelo impacto visual. "Parece uma capa de anúncio de gomas", reage a incrédula Nathalie. Do mexer na capa até à não publicação é apenas uma questão de tempo, de passagem do tempo. Paul ouviu considerações semelhantes, com desfecho idêntico, no que respeitava à necessidade de atualizar, mexer, mudar o estilo musical que ele e o colega de dupla traziam há anos ao bar onde eram DJ's residentes.


Sem casamento, após o divórcio que Heinz pede para seguir vida com outra pessoa e ao qual Nathalie reage (aqui recorro à reflexão de Nathalie com os alunos na resposta à questão filosófica: a verdade pode ser debatida?) com uma convicção, uma crença ou um ato de fé, que afinal não era uma verdade estabelecida pelo tempo: "Julguei que ias amar-me para sempre". Sem a mãe, cuja crescente insanidade leva ao internamento num lar, que do cheiro a morte (sentido e verbalizado por Nathalie) à sua efetivação é uma pequena passagem do tempo; sem os filhos em casa, que saem para as suas vidas. Sem a sua coleção de ensaios publicados, Nathalie caminha de forma periclitante na areia enlameada e preta da praia deserta e selvagem na Bretanha - numa despedida do casamento e daquela casa de muitas férias de família - em busca de rede e de ligação com a nova realidade. 


Nathalie diz a Fabien que tem sorte em ser intelectualmente realizada e como tal (ela) é feliz. E qual o lugar das emoções? Fabien, agora radicado e radicalizado nas montanhas alpinas, em mais uma perda no dia-a-dia de Nathalie em Paris, é a figura que liga o intelectual às emoções (para Nathalie). É nele, na projeção que faz a partir dele, no seu novo habitat - uma espécie de comuna de jovens intelectuais anarquistas -, que visita (ela e a gata que herdou da mãe, Pandora), e na sua natureza envolvente, nos campos, pelas árvores, espreitando e usufruindo do sol, perdendo vistas num horizonte que não acaba, que Nathalie, mais só do que acompanhada por Fabien, experimenta a sua liberdade, uma liberdade que agora é total, assim o diz. Mesmo que essa liberdade a faça chorar agarrada a Pandora: são dores de mudança. Porque a liberdade também traz solidão e esta também traz tempo para estarmos tristes. E aberta a caixa de Pandora, o instinto da gata dá força a Nathalie para fazer o seu uso da liberdade.


Neste trinómio de vidas, vistas e passeios por Paris, pelas praias da Bretanha, e pelo campo, com que nos presenteia 'O Que Está Por Vir', é impossível não lembrar Rohmer e os seus filmes, e uma certa herança estética no cinema de Mia Hansen-Løve. A diferença está no significado da sua utilização: se Rohmer usa a sua estética para pintar e enquadrar os vastos diálogos e também os estilos dos protagonistas, Mia dá-lhe valor interpretativo, substituindo ou prevalecendo sobre os diálogos. Em Mia, ao contrário de Rohmer, as imagens contam-nos mais do que as palavras; mas em ambos (Mia e Rohmer) umas dão poder às outras.


L' Avenir, de Mia Hansen-Løve (2016)

Visionado em Filmin Portugal

'O Que Está Por Vir', de  Mia Hansen-Løve (2016)

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