DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
'Entroncamento', de Pedro Cabeleira: uma terra de vaivém
Sempre que oiço falar do Entroncamento recordo-me de uma história inusitada que um velho conhecido viveu há uns 15 anos. Numa das chamadas telefónicas que atendia diariamente no call center de uma grande empresa, esse meu velho conhecido protagonizou um momento inolvidável com uma mulher do outro lado da linha (telefónica, no caso). Revestida de contornos de engate e de pura sensualidade, essa chamada valeu uma dura reprimenda ao pobre homem que se deixou seduzir, mas valeu também um romance no Entroncamento. O homem e a mulher que protagonizaram a picante chamada decidiram encontrar-se e, de imediato, deram seguimento à faísca que chispava pela linha telefónica - ele mudou-se para casa dela no Entroncamento e passou a fazer vaivém diário pela linha do comboio entre a cidade ribatejana e a capital, 1 hora e picos de viagem. Soube depois que não foi mais do que um romance passageiro no Entroncamento. Há menos de um mês, na noite das eleições autárquicas, o Entroncamento transformou-se no palco mediático que a extrema-direita populista montou para receber, já de madrugada, o líder do partido que acabara de conquistar aquela câmara municipal. 'Entroncamento' (2025) - filme exibido na secção ACID (Association du Cinéma Indépendant pour sa Diffusion) do Festival de Cannes e que terá três projeções no próximo Leffest - é a segunda-longa metragem, depois de Verão Danado (2017), de Pedro Cabeleira (escolha DA VAGA REALIZADOR DO MÊS [de Novembro]). Debruçando-se na geração com que o próprio cresceu no Entroncamento, Pedro Cabeleira (33 anos) desenha uma terra de chegadas e de partidas, de vaivém, de passagem, que a omnipresença visual e/ou sonora do comboio acentua, agudizando de certo modo o sentimento de imobilidade social para os que lá ficaram e que lá vivem. Aqueles que não apanharam o comboio da vida, para dali zarparem, entrelaçam-se com os que chegaram entretanto, e que continuam a chegar, até partirem novamente, todos enrolados numa mortalha de drogas, crime, precariedade, au jour le jour.
Já lá vão oito anos desde 'Verão Danado', a primeira longa-metragem do então novíssimo Pedro Cabeleira, acabado de sair da Escola Superior de Teatro Cinema, que juntou ou recrutou dezenas de amigos e colegas, e com escassos apoios e meios fez um filme geracional (de universitários em fim de fase em Lisboa) repleto de audácia, combinando subtileza com magnetismo de rostos e olhares, trabalhados pela câmara ao ritmo das músicas e, ao mesmo tempo, mergulhando numa exploração profunda e estendida do sensorial, pelas luzes psicadélicas, pelas sombras, pelas danças, pelos corpos em ebulição, pelas tripes - sem nunca recear que o prolongamento desses estados de alucinação ou de pura evasão pudessem cansar e aborrecer o espectador. Talvez pela forma com que filmou e deu relevo aos rostos, numa espécie de mini contre-plongée, a juntar à fisicalidade efervescente, e à câmara ao sabor dos corpos e dos seus movimentos, até mais na parte inicial do filme, cruzei 'Verão Danado' com o cinema de John Cassavetes, em particular com 'Rostos' (1968) e 'Maridos (1970), e, por influência de Cassavetes, cheguei ainda até Passion, filme-tese de Ryûsuke Hamaguchi. De 'Verão Danado' para 'Entroncamento', a câmara como que amadureceu e já sente necessidade de pausar mais, de se deixar ficar, talvez também em consonância com a geração agora retratada - dos 30 e já não dos 20 -, a obsessão pelos rostos, ligeiramente vistos de baixo para cima, não é tão marcada, mas continua presente, diria que é identitária. Agora há traços de filme noir, enriquecido pela presença de uma femme fatale feita das idiossincrasias que uma certa vida lhe incrustou - Laura (Ana Vilaça), a mulher do norte que chega ao Entroncamento vinda do famigerado Bairro do Cerco, no Porto. Mas se 'Verão Danado' embrenhava-nos acima de tudo num plano sensorial, numa total abstração face ao mundo lá fora, ao que está para vir -, 'Entroncamento', por sua vez, veste o pragmatismo da vida (adulta) real e coloca em reflexão muitos pontos que se cruzam, formando linhas com que a sociedade se cose hoje mais do que nunca: criminalidade e perceções; xenofobia e racismo; segregação social; efeitos do neoliberalismo no trabalhador, e respetivas condições de trabalho, e na mobilidade populacional forçada que alarga as áreas suburbanas das metrópoles (como Lisboa ou Porto) para um perímetro geográfico cada vez mais alargado, levando ao desenraizamento social.
Algures entre os filmes de gangsters e o realismo social, Cabeleira constrói o seu espaço partindo e debruçando-se de uma certa realidade dentro da própria realidade. Passa-se no Entroncamento, as sucessivas passagens do comboio lembram-nos isso, mas poderia ser, tal como 'Verão Danado', num não-lugar, porque até agora o cinema de Cabeleira parece quase só precisar de experiência(s) vivida(s) e de pessoas, atores muitos (mais ou menos relevantes na narrativa), para nos fazer extravasar. Este filme não é sobre a cidade do Entroncamento, este filme é sobre pessoas e lugares como aquelas que vivem no Entroncamento. 'Verão Danado' não era sobre jovens universitários em Lisboa, mas sim sobre um grupo de jovens em tempos de universidade, apenas.
Esta ideia de não-lugar que evoco é bem patente em 'Entroncamento'. Quando salta dos interiores - casas dos dealers, discoteca, armazém de uma superfície comercial - para os exteriores, o filme fá-lo quase invariavelmente à noite ou de madrugada, reduzindo, e quase anulando, resquícios de vida na terra - um pouco como Aki Kaurismaki faz com Helsínquia nos seus filmes -, onde, na calada da noite, só parece haver espaço para ajuntamentos da malta que se reúne para litrosas e ganzas - negociadas, compradas, vendidas e fumadas -, para ajustes de contas ou assaltos a lojas. Nas escassas cenas diurnas de exteriores são os bairros que rapidamente reconhecemos como sendo de habitação social que vemos. Já falámos da omnipresença do comboio, dia, noite e madrugada, o mesmo que trouxe Laura do Porto para o Entroncamento, no início do filme, e o mesmo que irá levá-la de volta dali, no final. E em cima dos créditos finais ficamos a ouvir o ruido do comboio, símbolo maior desse vaivém que se vive no Entroncamento, um pouco como vimos em 'Santa Iria' (2025), de Luís Miguel Correia, filme ao qual fui parar não só pelos comboios mas também pelas composições de música clássica introduzidas para acompanhar o rolar dos carros; em 'Santa Iria' andamos ao som de trechos sinfónicos de Beethoven, Tchaikovsky, Edvard Grieg; em 'Entroncamento' ouvimos composições de Claude Debussy. E fiquemo-nos por aqui nos pontos de contacto entre estes dois filmes portugueses deste ano.
Ao entrelaçar ciganos, brancos do Entroncamento, uma desterrada do Porto, negros que lá vivem, homens e mulheres, todos neste submundo de drogas, criminalidade e violência, vamos constatando, uma vez mais, que não há só pessoas boas nem só pessoas más e também que o meio e as circunstâncias são muitas vezes definidores de más ações. Não extraímos moralismos, não assistimos a transformações pessoais ou sociais, constatamos acima do mais o curso linear de uma determinada realidade que é fruto de uma realidade maior, global, que segue também ela em sentido contrário ou proibido.
'Entroncamento', de Pedro Cabeleira (2025)
Visionado no screener cedido pela Uma Pedra no Sapato
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'Entroncamento', de Pedro Cabeleira (2025)



