DA VAGA DE SALA
'Foi Só Um Acidente', de Jafar Panahi: a vingança também se faz de compaixão
É preciso recuarmos até 2006, com 'Fora de Jogo', para vermos um filme de Jafar Panahi sem a sua presença enquanto ator/personagem. Nas imediações de um estádio de futebol onde a seleção iraniana jogava o apuramento para o Mundial, assistimos a um outro jogo: o jogo do gato e do rato entre os militares e as jovens mulheres; eles empenhados em fazerem cumprir a lei iraniana que impede que as mulheres sejam espectadoras nos estádios de futebol; elas abnegadas em ludibriá-los e entrarem à socapa. Depois da prisão em 2010 - acusado de conspiração e propaganda contra o regime -, em que foi também proibido de fazer filmes, bem como de se ausentar do país, Panahi não mais deixou de dar a cara e o corpo, a juntar à alma e à mente, nos filmes que se seguiram. Em 'Isto Não É um Filme' (2011) faz questão de mostrar ao mundo, e ao regime, que não será a prisão domiciliária a impedi-lo de filmar - onde houver Panahi e uma câmara, o filme será uma mera consequência - e num formato vídeo caseiro vai-nos mostrando cenas do seu quotidiano intramuros, aproveitando as visitas, os vizinhos e até um entregador de pizzas para alimentar a narrativa e continuar a retratar a sociedade iraniana. Em 'Cortinas Fechadas' (2013) - ainda não cheguei a ver este filme -, Panahi, ainda em prisão domiciliária, agora a partir de uma outra casa (sua) junto ao Mar Cáspio, ensaia nova obra dentro da realidade do aprisionamento, agora no papel de realizador do filme dentro do filme. Em 'Taxi' (2015), de volta às ruas mas ainda e sempre sem autorização para fazer filmes, Panahi vira taxista e capta dentro do carro, e a partir do carro, com uma câmara que nunca sai do seu interior, vidas em Teerão - sem filtros, carregadas de vicissitudes. Em '3 Rostos' (2018), continuando ao volante, Panahi deixa a capital e ruma ao Irão profundo, rural e montanhoso para cruzar os tempos - passado, presente e futuro -, dando-nos a conhecer o ultraconservadorismo daquelas gentes, num anacronismo alinhado com a teocracia no poder. Em 'Ursos Não Há' (2022), no limiar da fronteira entre a realidade e a ficção, da fronteira entre o Irão e a Turquia, Panahi trava o corpo na linha mais ou menos imaginária que separa os dois países e não avança: mostra ao regime de Ali Kahmenei que não sai do país porque não quer fugir. E agora, em 'Foi Apenas Um Acidente' (2025) - Palma de Ouro em Cannes -, já autorizado a sair do país, Panahi não aparece no ecrã, talvez para esvaziar a centralização da resistência na sua pessoa e, ao invés, reforçar essa mesma resistência em figuras anónimas, representativas de todo um povo na sua heterogeneidade: mulheres e homens, operários e intelectuais.
Depois de diversos filmes a explorar e a pôr a nu as proibições e as leis anacrónicas da teocracia dos ayatollah, bem como as suas ramificações na sociedade iraniana - seja urbana, seja rural -, em 'Foi Apenas Um Acidente' o corajoso cineasta decide confrontar de frente o regime, denunciando os métodos de violência, tortura e morte levados a cabo nas prisões, e vais mais longe ainda: captura, amarra, verga o regime, numa vingança que oscila entre vontade de revolta e de revolução, e que no final mostra que a vingança não se serve fria, não se paga na mesma moeda, faz-se também de compaixão e humanismo. Quase no final do filme, quando Vahid (Vahid Mobasseri) e Shiva (Maryam Afshari), um homem e uma mulher, um operário e uma fotógrafa - ambos vítimas do regime pelas mãos do carrasco Eghbal (Ebrahim Azizi) algures no tempo na prisão -, deixam um objeto cortante ao tenebroso carcereiro, antes de partirem, para que ele possa livrar-se por ele próprio das amarras (das cordas que o prendem à árvore no escuro da noite, num plano fixo de longos minutos) e, quiçá, regenerar-se ou tomar consciência dos seus atos, Panahi está a exortar o regime para que o próprio se liberte de si mesmo. Um regime que mesmo amputado de grande apoio popular continua a sua voracidade repressiva, tal como Eghbal fizera na prisão - com Vahid, com Shiva, com a jovem noiva amiga de Shiva, com o dono da livraria amigo em comum de Vahid e Shiva, que não quer ir reconhecer o corpo (vivo) do carrasco, com o temperamental Hamid (Mohamad Ali Elyasmehr), também amigo, conhecido ou algo mais de Shiva - apesar da perna amputada, substituída por uma prótese, que o ajudou a tornar reconhecível aos olhos de Vahid quando o destino o trouxe ao seu armazém; mais até aos ouvidos do que aos olhos de Vahid, porque na prisão todos andavam vendados, daí a dificuldade de todos em reconhecerem a cara de Eghbal, já os ouvidos fartaram-se de escutar o chiar mecânico dos passos que a prótese ecoa. E a escolha para derradeiro plano desse chiar mecânico a cada passo de Eghbal é brilhante: a imobilidade que a câmara ganha e que congela o corpo à sua frente faz permanecer e prolongar o imobilismo perseguidor do regime iraniano.
Do final para o início do filme, ainda antes do guarda ser caçado por Vahid, no longo plano inicial em que Eghbal conduz o carro com a mulher e a filha numa estrada desterrada, sem iluminação alguma - muito semelhante àquelas que vimos em '3 Rostos' ou 'Ursos Não Há' -, quando ele sai do carro para ver o impacto que o atropelamento de um cão causou no veículo ("um simples acidente", diz a mulher à filha), num plano-sequência que estende o plano fixo inaugural, há um momento em que o rosto do homem fica com uma sombra negra a desenhar os seus contornos, rosto esse que logo de seguida, sempre e ainda no mesmo plano, ilumina-se de vermelho, da luz dos faróis do carro, para já, de sangue, depois, com o desenrolar da história. Para lá do início e do final do filme, há um longo plano a meio, um plano-sequência, que é verdadeiramente soberbo: Vahid, Shiva, a noiva e o noivo (vestidos a preceito, o que valeu a curiosidade de alguns transeuntes, incluindo o desejo de partilha de felicidade matrimonial pelos terminais de multibanco por parte de seguranças e gasolineiros, e alguma comicidade que o cinema de Panahi gosta sempre de oferecer) e Hamid estacionaram a carrinha num deserto e com o corpo adormecido do carrasco debatem sobre a justiça que deve guiar esta ação de vingança; o explosivo Hamid em movimento, acompanhado pela câmara, esbraceja argumentos enquanto os demais, sentados, espalhados, parecem soçobrar perante o exercício de um poder que não lhes pertence.
Panahi acaba por entregar às mulheres - e como se percebe - representadas por Shiva, a fotógrafa, a missão de derrubar moralmente o regime - leia-se, Eghbal - deixando para os homens, para o pobre Vahid, o exercício da compaixão e do humanismo. Já Hamid, a simbolizar a fação revoltosa do grupo, do olho por olho, dente por dente, é o primeiro a sair de cena. Para refletir.
Un Simple Accident, de Jafar Panahi (2025)
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