DA VAGA DE SALA - Especial Leffest

Stéphane Pires • 15 de novembro de 2024

La virgen de agosto, de Jonás Trueba: a virginal Itsaso-Eva


Vieram-me à cabeça os avistamentos da virgem naquele verão sufocante, em 'O Pântano' (2001), na Argentina de [Lucrecia] Martel, e lembrei-me também do eloquente Fabrice Luchini  (Octave) a dirigir-se a Pascale Ogier (Louise), apelidando-a de virginal, em  'Noites de Lua Cheia' (1984), de [Éric] Rohmer; isto depois de cruzar o olhar com Itsaso Arana, no preciso momento em que virou a cabeça, à entrada da Sala 3 do Cinema São Jorge, esta quinta-feira, na companhia de Jonás Trueba, para ambos apresentarem La virgen de agosto  (2019) - na retrospetiva do realizador espanhol em curso no Leffest. Enquanto falava sobre o filme - o argumento é escrito a duas mãos e duas cabeças por Itsaso e Jonás -, nos momentos que antecediam o visionamento, a atriz-musa de Trueba ia como que iniciando um processo de metamorfose, que nos iria deleitar do princípio ao fim, convertendo-se na virginal Itsaso (mulher-atriz)-Eva (mulher-personagem).


Portadora de um rosto que parece ter sido desenhado a lápis fino, com detalhe e delicadeza em cada traço, mantendo a tonalidade branca da tela, e com dois olhos colocados para dar vida ao retrato, Itsaso-Eva, a partir de agora só Eva, deambula entre a figura de uma atriz do anos 50 - na cena inicial do filme o homem que mostra o apartamento enquanto enrola um cigarro vai falando dessas atrizes que foram as primeiras a vestir calças no cinema, entre elas  Katharine Hepburn  (e, diga-se, como Itsaso e Hepburn têm rostos com traços similares, de fina e rara elegância!) - e a imagem de uma virgem do calor, do verão, de Agosto, vestida muitas vezes com cores alaranjadas, avermelhadas, rosadas, reservando o vestido branco para a noite das 'Lágrimas de São Lourenço',  de 11 para 12 de Agosto, em Madrid, a melhor noite para ver as estrelas no céu. Logo depois dessa conversa com o homem que lhe mostrou o apartamento para onde Eva se está a mudar - por pouco tempo, pois é uma casa emprestada -, vemo-la de rosto suado, levemente descabelada, efeitos dos tórridos 40 graus do Agosto madrileno, a esparramar-se no sofá, voltando o rosto para nós, num convicto e desafiadorregard caméra,  precisamente antes de desabotoar lentamente cada um dos botões da camisa transpirada, abrindo-a, mantendo-a presa pelos ombros, desvendando o sutiã preto, em harmonia cromática com as botas de cano baixo inseparáveis, para então soltar novoregard caméra,  convidando-nos a seguir a sua viagem transcendental -  o filósofo, escritor e poeta Ralph Wald Emerson, norte-americano, um dos pais do transcendentalismo que surgiu no século XIX, é também lembrado pelo homem do apartamento naquela conversa-cena inicial, que funciona como um warm uppara a narrativa - entre passado, presente e futuro, ao longo dos primeiros 15 dias de Agosto em Madrid, contabilizados em 15 separadores durante o filme.


Madrilena, com 33 anos, atriz precocemente reformada, Eva diz andar em busca de algo, mesmo que seja na sua cidade-natal, num verão quente, pelas ruas que vivem as festas religiosas e populares ,com gente aos magotes, procissões de dia, concertos à noite; danças e performances;bocadillos,cervezasmuitas e, para ela,copas de vino blanco. Para buscar a cidade e o que ela tem para dar com outras lentes, Eva apanha o bus turístico e fita uma jovem asiática (japonesa?), não resistindo a segui-la, saindo na mesma paragem, dirigindo-se ao mesmo museu. Através de outros olhos, de outra mente, Eva pode construir uma nova realidade, sem sair do mesmo lugar, da sua cidade; porém, no mesmo espaço é mais fácil o passado voltar ao presente. Primeiro, reencontra, ainda no museu, um antigo amor ou perto disso, não se chega a perceber na plenitude até porque Eva quer andar para a frente na sua busca e não voltar para trás; depois esbarra com o ex-namorado (acabaram há 3 meses) à porta do cinema, e sendo ele o protagonista que contracena com Itsaso em La Reconquista  (2016), ainda julguei que tivéssemos uma espécie de mini-sequela dessa inesquecível história, mas, para preservar o presente, libertar-se do passado e buscar um futuro, Eva prescinde da sessão (de cinema), por agora. E é precisamente em mais um reencontro com o passado, em casa da amiga (mãe de um pequenito) - de longa data, afastadas nos tempos correntes - que lhe dá guarida numa noite em que Eva fica fechada do lado de fora da porta de casa, que assistimos à reflexão, das duas, sobre como mudam as relações com o passar do tempo e com a distância, o que foram e o que passam a ser - uma conversa-reflexão embalada com suaves e curtas panorâmicas entre as duas, com a criança pelo meio, num estilo muito à Hong Sang-soo,   que convoca um certo vaivém de   impressões, emoções, sem ruturas. Diria que é como se a distância temporal entre a última vez que estivemos com essa pessoa (seja amigo, amante, familiar) e o momento em que voltamos a ver-nos abrisse um fosso, forçando-nos à (re)descoberta do outro, um outro que mudou, porque a vida muda-nos, uns mais outros menos, fazendo-nos hesitar entre a tentativa de resgate da mesma relação, dinâmica, química ou a construção de algo novo. As conversas dos filmes de Trueba  dão-nos sempre matéria para refletirmos.


No presente de Eva vão entrando novos rostos: uma alemã, Olka (Isabelle Stofell), que faz performances artísticas na rua e que é por agora vizinha dela, uma dupla de primos britânicos (um inglês e um galês), que metem conversa com Eva e a nova amiga germânica numa noite de rua, danças, copos e conversas. Da noite para o dia, da quente Madrid para o fresco de um rio, Eva, os novos rostos do presente e a amiga (com o filho) do passado vão a banhos e piquenique. Debaixo de uma longa camisa laranja, Eva resguarda o corpo do sol e das vistas dos outros, num pudor que surpreende a amiga alemã que tem as espanholas como nada púdicas. E neste presente Eva sente-se um tanto ou quanto deslocada. O enquadramento exemplar que vemos na imagem (abaixo), com Eva distante, física e mentalmente, dos demais, é apenas uma bela ilustração da consequente reflexão após a conversa com os restantes, à volta de uma toalha no chão - mais um belo enquadramento que capta todos em simultâneo, como se estivessem sentados à mesa -, sobre aqueles que mudam de lugar(es) para viver e aqueles que se mantêm sempre no mesmo. Eva é a única que viveu sempre em Madrid. Olka diz que é de grande valentia alguém conseguir libertar-se no seu lugar de sempre, considerando que é mais fácil fora. É um ponto de vista deveras interessante, na verdade, na nossa terra teremos sempre as raízes, o legado familiar, como amarras das quais nem sempre a libertação é fácil e/ou possível. Eva reflete sobre o tornar-se ou ser uma pessoa de verdade - aqui levou-me para outro filme, recente, Actual People  (2021),de Kit Zauhar, que foi escolha DA VAGA REALIZADOR DO MÊS, de Setembro, também aí assistimos a essa busca de algo para se ser alguém.


Libertada pela sessão deReikide mais um novo rosto do presente - a amiga que faz na nova ida ao cinema, gorada que foi a primeira tentativa, momento esse que permite também que a câmara nos mostre o cartaz afixado da retrospetiva de [Ingmar] Bergman, lá como cá, em exibição durante o verão -, Eva acompanha da varanda a passagem dos andores na procissão, segue o reflexo da luz na parede de casa, como guia mental, supera a barreira de vidro que a separa do futuro, força o acaso, primeiro, reforça o acaso, depois, e segue o ritual de um homem que parece também em busca de algo, ainda que com mais desalento do que Eva. "Cada vez somos mais cínicos", diz-lhe ele. Do bus turístico, no início, para o autocarro local, no fim, Eva veste a saia vermelha com o padrão igual às toalhas da romaria e dá-se à rua, encarna a virgem, e entrega-se ao futuro.


La virgen de agosto,  de Jonás Trueba  (2019)

Visionado no Festival Leffest, Cinema São Jorge


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La virgen de agosto, de Jonás Trueba (2019)

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